Travessia



Só escrevo sobre um livro se encontro a veia onde posso enfiar a agulha e injetar minhas impressões para chegar ao coração da obra. Às vezes, como tantos enfermeiros, tenho dificuldade para encontrar a veia boa, então deixo a tentativa para um mais experiente. Encontrei o caminho em Enquanto os dentes (Editora Todavia, 96 páginas), livro de estreia de Carlos Eduardo Pereira, analisando não o protagonista, Antônio, mas o espaço que ele percorre, principalmente os obstáculos, símbolos de sua condição de cadeirante, negro e homossexual.

O uso do narrador em 3ª pessoa colado ao protagonista, que Norman Friedmann classificou como onisciente seletivo, foi uma boa escolha. Primeiro porque marca o nome do protagonista. Nossa literatura está carecendo de personagens cujos nomes ficam na mente do leitor, pois muitos nem nomeados são, o que não é, logicamente, um problema. Carlos Eduardo Pereira nada contra a corrente, assim como o seu personagem que precisa voltar à casa paterna.

Depois de conseguir uma vida independente, longe do pai opressor, lembrando em muitos aspectos a relação conflituosa entre Franz Kafka e seu progenitor, Antônio se vê obrigado a voltar a morar com seus pais. A narrativa se dá justamente no dia em que ele começa o retorno depois de 20 anos longe de casa, assim como Ulisses, enfrentando obstáculos pelo caminho. Enquanto isso, rememora sua conturbada infância, seus anos na Escola Naval, a época de universidade, o gosto pela fotografia, o trabalho de pintor e o relacionamento com Arnaldo, até que um acidente de carro (ao contrário do herói grego, ele perde a batalha) muda completamente sua vida.

 Antes olhando tudo do alto, com mais de 1,90 de altura, sua visão de mundo perde a altivez. O dinheiro fica escasso (dependendo da aposentadoria), precisa sair do apartamento, ainda tendo que lidar com a separação do companheiro. O próximo obstáculo será o Comandante, como chamava o seu pai, um sujeito autoritário, e também a fragilidade de sua mãe, sempre obediente ao marido. Conseguiria reviver todos os momentos dolorosos psicologicamente mais uma vez?

“Com as limitações físicas, foi perdendo trabalhos, não entra mais na maioria dos lugares, não alcança determinadas alturas, não tem a mesma disposição de outros tempos. Passou a ver tudo por baixo.”

É emblemático que um dos transportes que Antônio pega no retorno a sua não tão saudosa Ítaca é uma barca chamada Gaivota. A lenta travessia da baía parece lembrar o barco de Caronte. Enquanto se dirige para mais uma morte em vida, na sua mente escorrem outras recordações. Ao longe, vê a ponte (“liga os dois lados da baía e mais parece uma cobra, se olhada assim deste ângulo à noite, uma cobra fininha com a pele brilhante raiada pelas luzes de freio das lanternas traseiras dos carros agarrados no trânsito infernal, e a gente fica sem saber de que lado fica o rabo”). Simbolicamente, e o romance é cheio de símbolos, vê ao longe a ligação com seu outro mundo se dissipar.

O final em aberto completa a travessia deixando-a incompleta. O círculo de sua vida não se fecha, o retorno ainda não acontece, a expectativa do leitor permanece. Essa abertura provoca no leitor a reflexão de que nada acaba ou que tudo pode se repetir, como no eterno retorno nietzschiano. Os desafios do nosso Ulisses ainda não terminaram.

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