Do pícaro ao malandro



Dia desses, um programa esportivo de uma TV por assinatura discutia, não lembro por que motivo, a origem da expressão “pícara sonhadora”, que dava nome a uma novela mexicana. Na tentativa de interagir com os apresentadores, enviei pelas redes sociais a explicação. Como sempre acontece comigo, minha contribuição não foi ao ar, enquanto desfilavam mensagens de outros telespectadores repletas de erros de ortografia.

Os fracassados como eu estão sempre no lugar errado e no contexto mais errado ainda. Então aproveitei para pesquisar mais sobre o pícaro e escrever uma crônica sobre o tema, afinal meus 5 leitores (eram 7, mas um morreu e outro me abandonou por causa da política) valorizam os esforços deste plumitivo (palavra que encontrei em Proust, cujo significado merece outra crônica).

Lembro-me da expressão quando estudava literatura espanhola na universidade, com a professora Lélia Almeida (que vai me perdoar se cometo algum equívoco). Estudamos as personagens picarescas, que eram tipos sociais que protagonizavam algumas novelas, entre elas “El Lazarillo de Tormes”, narrativa anônima de 1554. Eram indivíduos que se davam bem usando de várias artimanhas, enganando os outros, driblando regras. Em outros termos, é um anti-herói, ou seja, é um protagonista que tem predicados um tanto quanto duvidosos, ao contrário do herói idealizado, perfeito, das novelas de cavalaria ou da prosa romântica.

De pícaro vem a expressão picareta (nada a ver com o instrumento de trabalho de gente nada pícara), tão usada hoje em dia para rotular quem ganha vida enganando os outros, como os nosso políticos.

Na cultura brasileira, o equivalente é a figura do malandro, presente desde o romance Memórias de um sargento de milícias, Manuel Antônio de Almeida, passando pelas letras de sambas de breque, até chegar ao “vai, malandra” da Anitta. Um artista que ajudou a imortalizar a personagem foi Chico Buarque em suas canções e principalmente no musical A ópera do malandro.

Pois, malandramente, Chico Buarque foi nomeado o vencedor do Prêmio Camões (o equivalente ao Nobel da Literatura para a língua portuguesa) deste ano. Em que pese ser um grande letrista e ter escrito alguns bons (e outros razoáveis) romances e peças de teatro, o “guri” (para citar o título de uma de suas músicas, uma ode à malandragem) passa a frente de outros grandes que ainda não foram galardoados (como Adélia Prado, Ignácio de Loyola Brandão e Carlos Nejar). Foi uma escolha política e não literária, tendo em vista seu histórico ideológico, com o intuito de provocar o atual mandatário do país.

Quem sai derrotada é a literatura.

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