Ode ao indivíduo, ódio ao coletivo
Ayn Rand (1905-1982),
filósofa norte-americana de origem russa, escreveu toda obra sua literária — que
inclui A nascente e A revolta de Atlas — para
propagar uma filosofia, que se destaca, entre outros temas, pela crítica ao
comunismo. Talvez por isso ela tenha se tornado mentora do pessoal da direita e
sua obra é desprezada pela intelectualidade, cuja maioria é de esquerda.
O romance Cântico, publicado em 1938, cuja 2ª edição brasileira a Vide
Editorial lançou neste mês, com tradução de André Assi Barreto, é ambientado
numa sociedade no futuro em que foram abolidas as palavras "eu" e
"tu", bem como tudo que se refere à primeira e à segunda pessoa do
singular. Em quase todo o romance, menos nos capítulos finais, os personagens
falam no plural. Diz o protagonista no seu diário: "Nosso nome é Igualdade
7-2521, como está escrito no bracelete de ferro que todos os homens usam em
seus pulsos esquerdos. Temos vinte e um anos." Tudo é decidido pelos
conselhos e o lema é: "Somos um em todos e todos em um. Não há homens, mas
somente o grande NÓS. Uno, indivisível e para sempre." Nesse ponto, há
semelhanças com uma das obras fundadoras da literatura distópica, o
romance Nós, do também russo Yevgeny Zamyatin, que certamente deve
ter inspirado a escritora.
Trabalhando como varredor, de acordo com a ordem do Conselho de Vocações,
Igualdade 7-2521 encontra um túnel onde há objetos abandonados, entre os quais
lápis e papéis que o permitem escrever o diário. Por acaso, descobre a
eletricidade e consegue acender uma lâmpada. Notem que ele não conhecia esse
processo, visto que na sociedade em que vive a luz é proporcionada apenas por
vela. Seria a luz na escuridão do túnel a metáfora da busca pelo conhecimento?
Ele leva a lâmpada para o Conselho dos Estudiosos, mas é condenado por ter
feito uma descoberta sozinho, pois nada realizado fora do coletivo deve ser
aceito. Ao tentarem prendê-lo, ele escapa para um bosque, junto com Liberdade
5-3000, uma campesina por quem era apaixonado.
Um dos momentos mais interessantes acontece quando os dois encontram uma casa
no final do bosque. Acham-na diferente de todas as outras: é pequena, com
apenas uma cama em um quarto, visto que estavam acostumados com dormitórios
coletivos. Uma das salas, porém, mudaria suas vidas: "Encontramos uma
habitação com paredes feitas de estantes, que continham fileiras de manuscritos
desde o piso até o teto. Nunca havíamos visto tal quantidade, nem de uma forma
tão estranha. Não eram leves nem estavam enrolados, tinham capas duras de
tecido ou coro; as letras de suas páginas eram tão pequenas e parelhas que
ficamos assombrados com estes homens que tinham tal caligrafia. Demos uma
olhada e vimos que estavam escritos em nossa língua, mas encontramos muitas
palavras que não podíamos entender. Amanhã começaremos a ler estes escritos."
Eles desconheciam os livros, mas não a língua. E na leitura encontraram a
palavra proibida: EU. Os capítulos finais justificam o título, pois o
protagonista, que passa a se chamar Prometeu — o mortal que na mitologia grega
roubou o fogo dos deuses e o entregou aos homens, causando a fúria de Zeus —
escreve, agora na primeira pessoa do singular, um hino ao indivíduo. Eis um
trecho: "Qualquer que seja o caminho que tome, a estrela que me guia está
em mim; a estrela e a bússola que assinalam o caminho apontam somente em uma
direção. Apontam até mim."
Nossa sociedade não é muito diferente da descrita por Ayn Rand: ouvimos frases
como "tudo pelo social" ou "temos que pensar no coletivo";
os governos criam conselhos reguladores; os livros como fonte de conhecimento
estão sendo abandonados; falar em nome de uma coletividade é visto como atitude
de grandeza; e em uma dissertação de mestrado, por exemplo, não é aconselhável
o uso da primeira pessoa do singular. Pelo menos nós ainda temos liberdade de
nos expressarmos individualmente, mesmo correndo o risco de sermos taxados de
reacionários ou insensíveis. Não concordam CONOSCO?
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