Enfermidade literária



  
Sou um homem doente. Não como o “homem do subsolo”, de Dostoiévski, pois não sou mau, tampouco sofro do fígado. Minha doença é a literatura. Há pouco fiquei sabendo: minha irmã, que é manicure, tem uma cliente que me viu de pé, escorado numa parede, na frente de um grande supermercado da cidade, onde esperava minha esposa sair do trabalho. E eu estava lendo! Imagine! “Só pode ser doente”, disse a senhora. Tenho que admitir que talvez esteja mesmo, mas não pretendo me curar. Se os leitores querem me dar uma força, torçam para que eu não me cure jamais.

A doença foi muito bem diagnosticada em um livro de outro doente e dá título ao volume, El mal de Montano, do escritor espanhol Enrique Vila-Matas (Seix Barral, 336 páginas). Trata-se de uma enfermidade cujos sintomas são: viver “rodeado de citas de libros y autores”; “manía de verlo todo desde la literatura”; “obsesión por el mundo de los libros” – chamada de literatosis, expressão criada por outro doente, o uruguaio Juan Carlos Onetti –; tentar ser, encarnar, se converter “en carne y hueso en la literatura misma”; ler, ler, ler e, claro, querer escrever literatura, transformar tudo em literatura. 

Toda a obra de Vila-Matas se caracteriza por esse mal. Há sempre personagens que são escritores, críticos literários ou editores – como em Dublinesca – que citam outros escritores, outros livros, que discutem sobre o fim da literatura, sobre o bloqueio criativo, sobre a recusa em escrever – tema do romance mais famoso do escritor, Bartleby y compañía –, sobre grupos de escritores que seguem regras de escrita e de comportamento – em Historia abreviada de la literatura portátil –, sobre escritores que resolvem simplesmente desaparecer – em Doctor Pasavento, – sobre livros que matam quem os lê – em La asesina ilustrada – e sobre escritores que tentam imitar a vida de seus ídolos literários – caso de París no se acaba nunca, em que o autor conta seu início de carreira, quando tentava ser igual à Hemingway. Além disso, os textos de Vila-Matas se confundem muitas vezes com a sua própria vida e não sabemos o que é real e o que é ficção.

El mal de Montano, de certa forma, resume todas as obsessões do autor. É dividido em cinco partes bem distintas, que surpreendem o leitor pelas mudanças de rumo. Logicamente não vou revelar quais são as mudanças. O que posso dizer é que, na primeira parte, há o relato de um crítico literário cuja esposa, Rosa, o aconselha a viajar para o Chile a fim de tentar se livrar de sua enfermidade literária. Lá, passa a virada do século com uma aviadora amiga do casal, que nunca falava sobre literatura, e com o homem mais feio do mundo, Tongoy, um duplo do Nosferatu do cinema. Tongoy o orienta a, em vez de se preocupar com sua doença, tentar impedir a morte da literatura. O crítico tem um filho que mora na França, cujo nome é Montano, que sofre de um bloqueio criativo depois de escrever um romance sobre escritores que deixam de escrever. Inspirado num conto do filho, o crítico cria um mapa geográfico do mal de Montano para viver a literatura e evitar seu desaparecimento.

Na segunda parte, há uma desconstrução da primeira. Temos agora uma espécie de enciclopédia sobre os escritores preferidos de Rosario Girondo, que ficamos sabendo ser o narrador da primeira parte. É revelado também que sua doença literária poderia ter sido herdada de sua mãe, que escrevia diários e poemas. Na terceira parte, os relatos anteriores são mais uma vez descontruídos em uma conferência proferida por Girondo, em Budapeste, sobre diários pessoais de escritores. Na quarta parte, outro diário põe mais dúvidas sobre os relatos. Por fim, a quinta parte fecha o livro com uma narrativa metafísica.

Já escreveram que Vila-Matas é um escritor somente para escritores. Sua obra é metaliterária ao extremo, o que afasta muitos leitores e críticos os quais defendem outros temas da nossa vida mais relevantes para serem discutidos pela literatura. No entanto, como o narrador de El mal de Montano escreve, “entre la vida y los libros, me quedo con éstos, que me ayudan a entenderla. La literatura me ha permitido siempre comprender la vida. Pero precisamente por eso me deja fuera de ella. Lo digo en serio: está bien así”.

(Cassionei Niches Petry sobrevive como professor de Literatura. Já publicou 3 livros: Arranhões e outras feridas, Os óculos de Paula e Cacos e outros pedaços.)

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