Não olhe para trás (ou melhor, olhe sim)



Seguir sempre em frente, sem olhar para trás. Algumas pessoas pensam dessa forma e ditam suas vidas por esse princípio. O que passou, passou, não volta mais. A flecha lançada não volta ao arco. A palavra dita não retorna à boca. A ofensa proferida, o soco no rosto, a oportunidade perdida, o e-mail enviado... Esqueça. Não há como voltar ao passado, muito menos mudá-lo.

Contam-nos os gregos que uma ninfa, chamada Eurídice, fugia do filho do deus Apolo, Aristeu, que queria possuí-la, quando pisou em uma víbora que a picou, causando sua morte. Seu amado Orfeu, poeta e músico, que com sua lira encantava a todos, mortais e imortais, foi buscá-la no subterrâneo reino de Hades, conseguindo inclusive amansar o cão de três cabeças Cérbero. O deus do mundo dos mortos, emocionado pela melodia e pelo canto de dor do poeta, aceitou devolver a ninfa para Orfeu, mas com uma condição: no momento em que subissem de volta à superfície, ele deveria seguir à frente dela e não poderia, em hipótese alguma, voltar-se para trás. Bem próximo do fim da subida, com medo de que a amada não estivesse atrás dele, e desconfiado que o deus pudesse tê-lo enganado, Orfeu se virou. Eurídice foi arrastada de volta às trevas de Hades para nunca mais voltar.

Segundo Junito de Souza Brandão, Orfeu transgrediu o tabu das direções: "olhar para a frente é desvendar o futuro e possibilitar a revelação; para a direita é descobrir o bem, o progresso; para a esquerda é o encontro do mal, do caos, das trevas; para trás é o regresso ao passado, às hamartíai, às faltas, aos erros, é a renúncia ao espírito e à verdade." (Mitologia grega, volume 2, editora Vozes.) Olhar para frente, a partir dos pontos cardeais, é olhar para o leste, oriente, onde nasce o sol, afinal nos orientamos pelo sol, procuramos a luz. No oeste, o ocidente, o sol se põe, em latim, occidens, "o que morre". Então, vem o escuro, a falta de luz, logo, a renúncia ao conhecimento que é a verdade dos deuses, que não pode ser revelada, a ordem que não pode ser desobedecida. "Orfeu foi o homem que violou o interdito e ousou olhar o invisível", conforme podemos ler no Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant. Por isso, sofreu o castigo de perder Eurídice pela segunda vez.

Brandão ainda nos lembra de outros mitos e lendas relacionados ao tema. No livro sagrado dos cristãos, mais precisamente em Gênesis, no episódio da destruição de Sodoma e Gomorra, dois anjos que salvaram a família de Lot, recomendaram que ninguém olhasse para trás. A mulher de Lot, no entanto, se virou e se transformou numa estátua de sal. Na Odisseia, de Homero, para poder consultar o adivinho Tirésias no Hades, o herói Ulisses teve que sacrificar uma ovelha, realizando o ato de costas para o reino dos mortos. Em muitas religiões, feitiços são deixados em algum lugar, geralmente encruzilhadas, e depois, ao sair do local, não se pode olhar para trás.

Lembro-me, então, de um episódio da minha adolescência. Eu, já um cético, porém muito medroso, me deparei com um suposto caso de possessão espiritual na casa da família da minha namorada. Sua mãe estaria sendo dominada pelo espírito do marido que morrera há uns dois anos. Num ritual de religião de matriz africana, uma "filha de santo", possuída por uma entidade, fumando charuto e bebendo muita cachaça, conseguiu expulsar o espírito. Eu assistia a tudo incrédulo, porém com o coração quase na boca. Essa mulher, durante o dia, chorava de dor devido a um furúnculo nas nádegas. Pois agora ela se sentava no chão e não sentia dor nenhuma! Com a situação mais calma, decidi ir embora, no entanto fui advertido pelo tio da minha namorada, também "filho de santo", que havia forças misteriosas na rua, que era melhor eu passar a noite ali. Insisti, e ele concordou que eu fosse, mas antes fez um ritual: fiquei de costas para a entrada da casa e ele cuspiu água junto às minhas orelhas em direção à rua. Era uma proteção, disse, e me aconselhou a não olhar para trás, pois algum espírito me daria um tapa na cara. Cético que era, dei de ombros e me fui. Por vias das dúvidas, fui olhando para frente, reto, com a sensação de que estava sendo seguido. Mas cheguei são, suado e salvo a meu lar doce lar.

Repare, leitor, que, para falar sobre o assunto, tive que olhar para trás, voltar ao passado. É impossível buscarmos conhecimento se assim não o fizermos. Desobedecemos aos deuses para aprender a viver. A história da humanidade, a arte criada pelo homem, os mitos que nos explicam, a literatura que nos revela. O saber não está apenas na luz, também está na escuridão, escondido. É preciso entrar na selva escura, descer aos infernos, rever nossos passos, abrir os livros empoeirados nos cantos desertos de uma biblioteca, navegarmos em mares virtuais em que poucos navegam, buscar um "e-book" arquivado em um DVD de dados.

Visitando um blog, voltei alguns meses na sua timeline e encontrei um filme esquecido pelo tempo. Não o encontrando em nenhuma locadora, fiz o download para assisti-lo. Trata-se de Terra d'água, do ano de 1992, baseado em romance publicado nove anos antes pelo britânico Graham Swift. O enredo volta mais um pouco na linha temporal e chega aos anos 70, quando um professor de História, Tom Crick, questionado por um aluno sobre a relevância dessa matéria na escola, voltou mais ainda no tempo e relatou seu relacionamento com a namorada nos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial. Regressando ainda mais, chegou à Primeira Grande Guerra para falar sobre sua família. As lembranças, de uma forma implícita, mostraram a importância de se estudar os fatos históricos. Se a narrativa de sua vida explicava os fatos presentes e o ajudou a se encontrar consigo mesmo, bem como entender o comportamento estranho de sua esposa, o estudo da História ensina a nos conhecer, a entender o mundo, a corrigir os erros no presente e evitar novos erros no futuro.

Olhando agora para trás, analisando o que escrevi, vejo que não era este ensaio que eu havia projetado. Se tivesse seguido o plano, olhasse só para frente, o texto seria outro. Poderia ter sido muito melhor, talvez. Ao voltar os olhos para o livro de Junito de Souza Brandão que estava nas estantes às minhas costas (aliás, sempre tenho que olhar para trás quando preciso de um livro que me ajude a escrever), busquei no mito antigo, nos primórdios da humanidade, algo para entender o presente, no século XXI.

O ontem explica muito melhor o hoje. 

(Ensaio publicado na minha coluna no Digestivo Cultural em 19/08/2015.)

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