QUANDO BOLAÑO APARECEU NO MEU QUARTO...
...eu
ainda não o conhecia. Era um adolescente, só pensava em ouvir música (minto,
gostava de ler e escrever também, mas não pegava bem dizer isso). No meu “micro
system” rodava um rap dos Racionais nos momentos de fúria.
– “Mis poemas casi no lo conoce
nadie, lo que probablemente esté bien” – disse Bolaño, e quase não o entendi. Apenas
lia em espanhol. Desliguei o rádio e perguntei:
– O senhor é escritor?
–
“Soy mucho más feliz leyendo que escribiendo”.
Com vergonha, mostrei a pequena
biblioteca dentro do guarda-roupas, em cujas portas havia colado pôsteres de
mulheres nuas. Tinha mais fitas K7 do que livros. E mais revistas
pornográficas.
– É só o que tenho.
Fez uma careta e puxou um maço de
cigarros que pegou provavelmente de sobre a mesa da cozinha. Fez outra careta
na primeira tragada e olhou a marca.
–
“Mucho más importante que la cocina literaria es la biblioteca literaria”.
E saiu. Hesitei em segui-lo.
Quando resolvi ir atrás dele, já estava um pouco distante. Como um detetive
selvagem, segui seus passos.
Eu o vi
entrando em um bar do Centro. Fiquei do lado de fora. Logo saiu com um copo de
caipirinha.
– “Lo dionisíaco ha triunfado”.
Fez um gesto para que o acompanhasse.
Entramos em outro bar. Jovens e nem tão jovens bebiam e conversavam ao som de
“Anunciação”, do Alceu Valença. Uma mulher dançava sozinha, rodando como se em
transe. A figura que apareceu no meu quarto, e nem sei por que a seguia, seria
um sinal? Ainda acreditava no sobrenatural.
–
“¿Qué haces en esta ciudad donde eres pobre y desconocido?”
Não soube o que responder. Era
jovem, ora, vivia na barra da saia da mãe e recebia uns trocados para ajudar o
pai na marcenaria. Não tinha escolha, ainda. Mas não disse isso. As minhas
leituras não me provocaram a vontade de sair, me aventurar, buscar experiências
para a carreira de escritor que almejava.
Fez mais um gesto para sairmos e,
na rua, acendeu mais um cigarro. Perguntei a ele se era legal ser escritor.
– “A
veces me creía pésimo, a veces fracasado, pero siempre un escritor”.
– E quais as dificuldades que
encontrou?
–
“Rechazos de Anagrama, Grijalbo, Planeta, con toda seguridad también de
Alfaguara, Mondadori. Un no de Muchnik, Seix Barral, Destino… Todas las
editoriales… Todos
los lectores… Todos los gerentes de ventas…”
Eu ainda não sabia quem ele era,
perguntei seu nome e não respondeu. Sabia que era escritor, sabia que era
grande, eu já lia autores de língua espanhola, mas quem era ele?
Agora somente caminhávamos.
Intimidei-me com sua presença, ele apenas contemplava as ruas.
– “Los detectives perdidos en la ciudad oscura”.
Eu não
havia lido Los detectives salvajes. Ou melhor, ele ainda não havia
escrito o romance, talvez o estivesse escrevendo. O Bolaño que estava
caminhando comigo pelas ruas da pequena cidade não era o mito Bolaño. Já era,
porém, o meu mito. Não me questionei como apareceu no meu quarto. Só sei que
apareceu, assim como não sei de que modo a literatura dele, anos depois, entrou
na minha vida. Só sei que entrou.
Paramos na praça central.
Ofereceu-me um cigarro e eu aceitei. Já fumava escondido da mãe. Agora iria
fumar com um escritor, um grande escritor. O que poderia aprender com ele?
– Por que veio para cá?
–
“Por la casualidad, el azar”.
– E pretende voltar para seu
lugar de origem?
–
“Sí, y si vuelvo será también por azar”.
Revirou seu bolso e puxou uma
folha de papel. Pediu que eu lesse em voz alta. Arranhei meu
fraco espanhol:
– “A
finales de 1992 él estaba muy enfermo/y se había separado de su mujer./Ésa era
la puta verdad:/estaba solo y jodido/y solía pensar que le quedaba poco tiempo”.
Estávamos justamente nos últimos
meses de 92. O poema falava dele mesmo? Ou seria apenas o eu lírico e o autor
não falaria de si próprio?
– É bonito – eu disse.
Arrependi-me, porém, de dizer algo tão simples sobre o que poderia ser uma
obra-prima. Não saberia, no entanto, dizer algo além disso.
Ele apenas me olhou, fez a careta
com a qual eu já simpatizava, pegou de volta a folha e a rasgou. Bateu uma
vergonha tão grande que não sabia onde me esconder. Não sei se foi por causa da
minha opinião ou ele mesmo não gostou do que ouviu, o certo é que ele
desprezou e jogou no lixo o que escrevera.
Silenciei-me, não sabia mais o
que falar. Apenas ouvi suas derradeiras palavras, pelo menos naquela noite e
pelo menos dirigidas a mim:
–
“Pero los sueños, ajenos a la enfermedad,/acudían cada noche/con una fidelidad
que conseguía asombrarlo”.
Não as guardei todas na memória,
que sempre foi fraca. Como diria anos depois para os futuros alunos, sempre no
início das aulas, o bom professor deve ter três qualidades fundamentais: a
primeira é a boa memória, e as outras duas sempre esqueço. Entretanto, mais de
vinte anos depois do nosso encontro, ao ler um de seus livros, me deparei com
um poema, cujos primeiros versos correspondiam ao que eu lera, e depois ao que
ele recitara. O remorso, diminuído pelo tempo, foi devidamente enterrado. Não
fui responsável pela humanidade deixar de ler uma bonita, ou melhor, uma
maravilhosa, complexa e inquietante obra de um grande escritor.
Quando Bolaño passou a ser
reconhecido, eu já estava na universidade, estudando Letras, lendo a literatura
latino-americana, mas sem ter ainda contato com seus livros. As fotos que via
nos jornais e nos cadernos de cultura me jogaram para aquela noite estranha de
1992. Ele se lembraria do nosso encontro? E se eu contasse para os meus colegas
ou para os meus professores, eles acreditariam na minha história? É claro que
não.
Infelizmente, não tive a
oportunidade de perguntar ao próprio Bolaño se ele se lembrava de mim. Morreu
onze anos depois daquela noite, muito doente, como naquela noite, mas casado,
com filhos e feliz, diferentemente daquela noite. Aliás, naquela noite eu o vi
pela última vez entrando num táxi. Acenou-me de dentro do veículo e foi só.
Hoje, não estou doente, não estou
separado, não estou sozinho nem fodido e ainda me resta muito tempo pela
frente. Conseguirei escrever algo à altura do que ele escreveu?
(Do meu livro de contos Cacos e outros pedaços, editora Penalux.)
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