Carta de uma leitora sobre "Os óculos de Paula"


Vitória da Conquista, Ba   07/12/19

Olá, Cassionei

Essa é a minha primeira carta a um escritor. É que leio gente morta, sobretudo os que viveram ou escreveram no final do século XIX e todo o século XX. Confesso envergonhada que não tinha hábito de ler autores contemporâneos, talvez porque é mais fácil conseguir livros mais antigos. Ler é minha segunda natureza e escrever tem sido recentemente uma necessidade visceral. Então, é com certo pudor de errar a mão que tomo a liberdade de me dirigir a você.
Acabo de ler dois livros seus: Arranhões e outras feridas e Os óculos de Paula. Adquiri alguns volumes desse último para presentear meus amigos do Clube do Livro Um Dedin de Prosa e Poesia que funciona mensalmente aqui em casa. Confesso que não deu para esperar pela entrega dos volumes físicos, e que li no formato digital que você disponibilizou. O pacote só chegou ontem, achei o livro muito bonito e imaginei como seria ter em mãos um livro escrito por mim.
Não tenho conhecimentos de teoria literária, sou apenas uma pessoa que sempre gostou de ler, é nesse diapasão que passo a comentar minhas impressões.
·         O tema da busca do outro para achar a si mesmo é uma questão que me toca profundamente. Acho que essa era a jornada de Paula, cheia de desencontros e equívocos, como é toda jornada humana.
·         A tensão entre Paula, o amante e o marido é parcial, parte de como Paula vai interpretando seus sentimentos e o dos outros, com diversas lentes ou sem os óculos. Isso me toca, pois penso na cegueira nossa de cada dia. Enxergamos o mundo sempre enquadrado, esquecemos suas camadas, profundidades, hiatos. Não é natural olhar com os olhos dos outros.
·         O escritor, ou os vários escritores-narradores nos confundem, e isso é bom. Nos surpreende com o jogo entre ficção e realidade, autoficção e possibilidades de leitura. Como leitora precisei agir, completar os quadros, as situações, me perder quando achava que estava entendendo onde tudo iria desembocar. Adivinhei uma parte do desfecho do marido, se bem que com aquela carta final de Paula, precisei ir para outro patamar. Gosto desse jogo do livro dentro de outro livro, do livro que fala da escrita, da literatura como norte para os personagens. Não sei se o leitor comum gosta disso. Fiquei me perguntando, uma vez que também faço esse jogo em coisas que escrevo, mas como ainda não publiquei nada substancial, não sei qual o equilíbrio. De qualquer forma, acredito muito mais no escritor que não faz concessões. Seu personagem escritor discute sobre isso, é uma forma de se justificar (?)
·         Apesar do tema difícil do suicídio aparecer o tempo todo, há doses de humor temperando tudo, cortes para diminuir a tensão e ao mesmo tempo aumentar o suspense: onde tudo isso vai dar? Gosto muito das suas reviravoltas. Elas estão muito bem colocadas em seus contos também. É uma espécie de crédito que você dá ao leitor, surpreendê-lo e esperar (contar) com que ele entenda. Nos contos os finais estão mais abertos, gosto disso também. Assim como a explicação surreal da carta de Paula ao final do livro.
·         Tratar do suicídio não é fácil, é doloroso e angustiante. Acho que ele sempre aparece como saída, outras vezes como vingança, demonstrando impotência. Você ainda acrescentou uma outra perspectiva, o suicídio como recomeço. O autor que vai se matando aos poucos para com a escrita desse mesmo processo se renovar, jogo bem perigoso. De qualquer forma, você trouxe também a questão do ler sobre o suicídio como uma inspiração para o ato. Essa parte é dolorosa. O marido acabou fazendo uma piada de mal gosto com Paula, deixando em aberto a questão de como se convive com as consequências da ação do suicida.
·         O marido que escreveu um livro em branco também mexeu comigo, como uma vida que não foi notada, como um livro não escrito. Só o que está escrito que é de verdade, quando justamente o que está escrito é tudo ficção.
·         Pensando sobre os personagens e os papéis que eles representam, a troca de máscaras e de protagonismo, penso que somos assim mesmo. Quem saberá qual a sua importância dentro das múltiplas tramas que participamos diariamente? Acho que você institui a dúvida, a desconfiança, a existência de múltiplas possibilidades. Ainda que só tenhamos alguma clareza disso quando olhamos de fora, como espectadores.
·         Gosto dos personagens que estão sempre se questionando. Tive angústia quando eles não decidiam, deixavam as circunstâncias ou os outros decidirem (Paula e o amante, Paula e o Marido), creio que na maioria dos casos é assim que avançamos, por isso, as atitudes dos personagens me afligiam, ainda que os entendesse e aceitasse seus limites.
·         Talvez o que ficou como resíduo para mim, foi o grande tema da busca e do desencontro. Paula queria reencontrar-se consigo mesma através do antigo namorado; o escritor queria escrever e ter reconhecimento, não sabia o lugar dos relacionamentos em sua jornada; o marido, aparentemente indiferente, sofria e buscou na escrita e na solução final, marcar sua presença no mundo; o escritor-leitor que busca nortes na literatura; as citações de outros autores que também estavam buscando algo...
·         Sobre a estrutura gostei demais, dos capítulos curtos, dosando a emoção, conduzindo o suspense, as formas de grafar as diversas escrituras dentro do livro, as do amante, as de Paula e as do marido, cuja identidade só descobrimos ao final, ele também deixava suas marcas. Como num bom livro policial passamos a rememorar mentalmente as pistas e a duvidar das nossas primeiras interpretações. É que somos leitores desconfiados, buscamos pistas, lógicas, ainda que muitas vezes não haja nenhuma lógica possível.
Poderia falar de outros elementos, mas acho que está de bom tamanho. Espero que entenda esses cortes aleatórios que fiz do seu livro. Acho que elegi algumas questões que são caras para mim e que possivelmente representem coisa muito diversa para você.
Também quero ser uma escritora. Ainda que as coisas que gosto de escrever sejam bem diversas, no sentido da forma. Meus contos não obedecem receitas tradicionais, não têm grandes enredos e nem clímax ou grandes reviravoltas, estou achando que eles nem são contos. Como não tenho experiência me falta parâmetros. O que sei é que como Paula preciso ajustar as lentes, ver mais do que me é permitido e ir além. Quero também aprender a usar os outros sentidos, para que essa visão seja menos contaminada pelos limites que lhe são impostos de todos os lados. Sei que não é possível ver tudo, é regra do jogo.
Ainda que você tenha matado o pobre autor duas vezes (que eu saiba até aqui), espero que venham outras histórias.
Grande abraço.

Juliana Brito

Comentários

Mensagens populares