O canto das sereias (parte 2)


Franz Kafka, no começo do século XX, reescreve o mito das sereias. À maneira kafkiana, obviamente. Para Modesto Carone, “os mitos são objeto da meditação artística, em geral irônica, do criador de O processo”. No conto “O silêncio das sereias”, Ulisses não só é amarrado ao mastro do barco, como também enche seu ouvido de cera. O poeta Nelson Ascher, em postagem numa rede social, chegou a levantar a hipótese de que foi um equívoco do escritor, o que me instigou a pesquisar sobre o assunto. Realmente, os principais leitores de Kafka parecem ignorar esse detalhe, e acabam enfocando mais o fato de as sereias não entoarem seu canto.

“Mas eis que então as sereias mostram ter uma arma ainda mais terrível do que o canto: a de seu silêncio”, diz o narrador do conto (aqui na tradução de Marcelo Backes, em Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias, Editora Civilização Brasileira). “Embora não tenha acontecido, talvez possa ser imaginado que alguém se salvou de seu canto, mas de seu silêncio com certeza não.”

Ulisses não ouve, as sereias não cantam. A inversão do mito nos coloca contra a parede. A literatura de Kafka sempre nos faz isso. Às vezes o leitor, como o Ulisses do conto, tenta ignorar o canto da sereia da Literatura, quer passar longe da arte nessa odisseia que é a vida, deseja o mais confortável. Faz ouvidos moucos, como se dizia antigamente.

Os artistas, então, desistem de praticar sua arte (“...assim que Ulisses chegou, as formidáveis cantoras não cantaram, fosse porque acreditassem que esse inimigo pudesse ser vencido apenas com o silêncio, fosse porque a visão da felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em nada a não ser em cera e correntes – fizera com que elas se esquecessem de todo o seu canto”), se entristecem por causa da indiferença pela sua obra (“Ulisses, porém, para expressá-lo de modo simples, não ouviu o silêncio das sereias, achou que elas estivessem cantando e que ele apenas estava protegido de ouvi-las. Fugidiamente, viu primeiro os movimentos de seu pescoço, a respiração profunda, os olhos cheios de lágrimas, a boca semiaberta, mas achou que isso fazia parte das árias que se perdiam em torno dele sem ser ouvidas”) e tentam outras formas para atrair o público, apelando para a dança, por exemplo (“Elas, no entanto – mais belas do que nunca –, se esticaram e se contorceram, deixaram os cabelos terríveis balançar soltos ao vento e cravaram as unhas livremente no rochedo. Não queriam mais seduzir, mas apenas capturar o reflexo dos grandes olhos de Ulisses por tanto tempo quanto lhes fosse possível”). Ou então pode-se dizer que Ulisses é o crítico literário senhor da razão (“À sensação de tê-las vencido com suas próprias forças e à arrogância que tudo leva de arrasto resultante disso, nada há na terra que possa resistir”) e, apesar dele, o artista continua criando (“Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas, na época. Sendo como foi, no entanto, elas continuaram ali, apenas Ulisses lhes escapou.”) à procura de outro crítico que o reconheça.

Outros contos de Kafka tratam da dolorosa relação do artista com seu público, como “O artista da fome” e “Josefine, a cantora, ou O povo dos camundongos”. “O silêncio das sereias”, de certa forma, representa o próprio autor que não recebeu ainda em vida o reconhecimento que merecia. Talvez por isso pediu ao amigo Max Brod que queimasse seus inéditos (inclusive esse mesmo conto). Brod, para nossa sorte, tapou, como se usasse cera, seus ouvidos para o pedido.

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