O canto das sereias (parte 1)
O que se pode ter
certeza é de que no mito elas não eram seres amáveis e inocentes como a pequena
sereia do conto de Andersen, dos desenhos animados, filmes ou da novela de
televisão. As lendas semelhantes de outros lugares, como a da Iara ou Mãe
d’Água, no folclore brasileiro, apenas reforçam o caráter sedutor e destrutivo
das criaturas. Deveríamos manter distância delas? Deveríamos fechar os ouvidos
para o seu canto?
Antes de Ulisses,
conta-se que o navio Argos, na expedição em busca do Velo de Ouro, passou pela
ilha das Sereias, que ficava no Mar Mediterrâneo. Orfeu, no entanto, tocou, com
sua lira, uma melodia muito mais bela do que a música das criaturas e, por
conseguinte, os Argonautas não foram atraídos para as rochas, com exceção de um
deles, chamado Butes, que devido a sua beleza foi salvo depois das profundezas
do mar por Afrodite. Ao praticar uma arte mais bela, Orfeu simboliza uma forma
de resistência à mediocridade.
Voltando à
“Odisseia”, Ulisses era curioso, queria ouvir o canto das Sereias. Ele então
tampou com cera o ouvido dos seus marinheiros e foi amarrado por eles no mastro
da embarcação, podendo, com isso, ouvir o canto sem o perigo de se atirar no
mar e perecer. Ulisses tentava se livrar das cordas, mas seus companheiros, devidamente
impedidos de ouvir o canto, foram firmes em não soltá-lo e apertavam mais ainda
os nós. Bons amigos nos livram de músicas indesejadas, bons amigos nos alertam,
nos livram do perigo. Não por acaso, a expressão “se deixar levar pelo canto da
sereia” ganhou a conotação de se deixar ser arrastado para o mal caminho, como
o das drogas, por exemplo.
Para Pierre
Vidal-Naquet, em “O mundo de
Homero”, “a poesia tal
como a escrita, é coisa perigosa”, sendo que a Odisseia nessa passagem faz
uma “reflexão sobre a função do
aedo, sobre sua grandeza e os perigos que ele pode representar”.
A música (e toda
forma de arte) nos seduz e às vezes nos desvia de objetivos mais práticos do
dia a dia. Quantos alunos vejo a minha frente com seus fones de ouvido no
último volume e que, por isso, não estão prestando atenção nas lições? Machado
de Assis já nos alertava sobre esse canto da sereia no seu “Conto de escola”.
Pilar é um aluno
inteligente, que aceita uma moeda de prata de um colega para “uma troca de
serviço”, que seria explicar “um ponto da lição de sintaxe”. Acaba sendo
descoberto devido a uma delação de outro colega e apanha do professor. No outro
dia, mata a aula, seduzido por um batalhão de soldados marchando ao som de um
tambor.
Pilar foi atraído
por dois cantos das sereias: o dinheiro fácil em troca de favores, como nossos
políticos, e a música, que para os estudantes de hoje é o “tamborzão” do “funk
carioca”, que destroça os cérebros assim como as criaturas mitológicas faziam
com os inocentes marinheiros.
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