O canto das sereias (parte 1)



 No imaginário atual, as sereias são criaturas metade mulher e a outra metade peixe. Na mitologia grega, no entanto, são mulheres com corpo de ave. Há representações em vasos antigos que trazem a imagem delas voando ao redor do barco de Ulisses, num dos episódios marcantes da “Odisseia”, de Homero. Pierre Grimal afirma, em seu “Dicionário da Mitologia Grega e Romana”, no verbete “Sirenes”, variante para o termo em português de Portugal, que “são gênios marinhos, metade mulheres, metade pássaros”. No “Dicionário de Símbolos”, de Chevalier e Gheerbrant, há uma elucidação sobre o termo: “Monstros do mar, com cabeça e tronco de mulher, e o resto do corpo igual ao de um pássaro ou, segundo as lendas posteriores e de origem nórdica, de um peixe.”

O que se pode ter certeza é de que no mito elas não eram seres amáveis e inocentes como a pequena sereia do conto de Andersen, dos desenhos animados, filmes ou da novela de televisão. As lendas semelhantes de outros lugares, como a da Iara ou Mãe d’Água, no folclore brasileiro, apenas reforçam o caráter sedutor e destrutivo das criaturas. Deveríamos manter distância delas? Deveríamos fechar os ouvidos para o seu canto?

Antes de Ulisses, conta-se que o navio Argos, na expedição em busca do Velo de Ouro, passou pela ilha das Sereias, que ficava no Mar Mediterrâneo. Orfeu, no entanto, tocou, com sua lira, uma melodia muito mais bela do que a música das criaturas e, por conseguinte, os Argonautas não foram atraídos para as rochas, com exceção de um deles, chamado Butes, que devido a sua beleza foi salvo depois das profundezas do mar por Afrodite. Ao praticar uma arte mais bela, Orfeu simboliza uma forma de resistência à mediocridade.

Voltando à “Odisseia”, Ulisses era curioso, queria ouvir o canto das Sereias. Ele então tampou com cera o ouvido dos seus marinheiros e foi amarrado por eles no mastro da embarcação, podendo, com isso, ouvir o canto sem o perigo de se atirar no mar e perecer. Ulisses tentava se livrar das cordas, mas seus companheiros, devidamente impedidos de ouvir o canto, foram firmes em não soltá-lo e apertavam mais ainda os nós. Bons amigos nos livram de músicas indesejadas, bons amigos nos alertam, nos livram do perigo. Não por acaso, a expressão “se deixar levar pelo canto da sereia” ganhou a conotação de se deixar ser arrastado para o mal caminho, como o das drogas, por exemplo.

Para Pierre Vidal-Naquet, em “O mundo de Homero”“a poesia tal como a escrita, é coisa perigosa”, sendo que a Odisseia nessa passagem faz uma “reflexão sobre a função do aedo, sobre sua grandeza e os perigos que ele pode representar”.

A música (e toda forma de arte) nos seduz e às vezes nos desvia de objetivos mais práticos do dia a dia. Quantos alunos vejo a minha frente com seus fones de ouvido no último volume e que, por isso, não estão prestando atenção nas lições? Machado de Assis já nos alertava sobre esse canto da sereia no seu “Conto de escola”.

Pilar é um aluno inteligente, que aceita uma moeda de prata de um colega para “uma troca de serviço”, que seria explicar “um ponto da lição de sintaxe”. Acaba sendo descoberto devido a uma delação de outro colega e apanha do professor. No outro dia, mata a aula, seduzido por um batalhão de soldados marchando ao som de um tambor.

Pilar foi atraído por dois cantos das sereias: o dinheiro fácil em troca de favores, como nossos políticos, e a música, que para os estudantes de hoje é o “tamborzão” do “funk carioca”, que destroça os cérebros assim como as criaturas mitológicas faziam com os inocentes marinheiros.

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