No fio da navalha
Tenho uma biblioteca razoável (gostaria que fosse maior),
formada em sua maioria por livros comprados em balaios da Feira do Livro de
Porto Alegre e sebos, alguns destes de diferentes partes do país, graças à
possibilidade de compra pela internet. Às vezes, no entanto, demoro anos para
abrir um exemplar, pois sempre a fila de leituras vai aumentando. Aliás, é a
única fila de que gosto.
Muitas vezes acontecem surpresas nessas aquisições. Uma
delas foi abrir um exemplar de “O risco do bordado” e me deparar com um
autógrafo de seu autor, Autran Dourado, escritor mineiro que morreu em 2012,
uma de minhas inspirações literárias. Leio e releio sua obra constantemente,
além de analisá-la em resenhas e ensaios, por isso poder percorrer com meus
dedos a tinta em que ele escreveu seu nome traz uma emoção que parece boba,
inexplicável. É um forma de estar próximo do mestre.
Em outra oportunidade, havia dentro de um livro uma passagem
de ônibus, não me recordo de que data. Era uma coletânea de crônicas de
Fernando Sabino, então imaginei um leitor se deliciando, numa curta viagem, com
uma história curta e engraçada, talvez até para esquecer um pouco dos
compromissos do dia a dia. Eu me vi nesse leitor, pois durante mais de 5 anos da
minha profissão de professor tinha que me deslocar de ônibus entre Santa Cruz
do Sul e Venâncio Aires para lecionar, e a literatura era minha companheira
inseparável no trajeto diário.
Já encontrei uma pequena flor prensada entre as páginas de
“O morro dos ventos uivantes”, de Emily Brontë (ironicamente nenhum personagem
desse romance é um ser delicado como uma flor), assim como encontrei
declarações de amor através de dedicatórias em livros de forma alguma
românticos. No entanto, a coisa mais curiosa que encontrei num exemplar de um
sebo foi uma lâmina de barbear. O livro era “Estilos de época na Literatura”,
de Domício Proença Filho, crítico, professor, poeta e membro da Academia
Brasileira de Letras. A lâmina estava numa página em que havia uma citação de
Gustave Flaubert: “O único maio para suportar a existência é afogar-se na
literatura como numa orgia perpétua.”
Estaria o leitor desse livro passando por tortuosas questões
existenciais e estava prestes a utilizar-se da lâmina para cortar seus pulsos? É
o que imagino. A citação do autor de “Madame Bovary” o teria salvado? É
provável, pois entrar no universo literário é uma forma de, pelo menos, adiar o
suicídio. Ou esse objeto cortante seria apenas uma lembrança simbólica desse
leitor sobre o quão cortante é a Literatura, que nos faz constantemente
questionar sobre o mundo caótico que nos rodeia e do qual, obviamente, fazemos
parte e não podemos fugir? É possível, pois a boa literatura nos fere, machuca,
corta e assim, paradoxalmente, cura, conforta e cicatriza feridas.
A lâmina está limpa, sem nenhum indício de ferrugem. Eu a
coloquei grudada na parede, à frente aqui do lugar onde escrevo, junto com
citações de escritores e filósofos, as vozes que me acompanham e me guiam para
escrever, entre outras coisas, esta coluna semanal. É um lembrete de que
vivemos sempre no fio da navalha. “Viver é muito perigoso”, como escreveu
Guimarães Rosa.
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