Caixa de Pandora
“A partir de certo
ponto não há mais qualquer possibilidade de retorno. É exatamente esse o ponto
que devemos alcançar.”
Franz Kafka
Não, não. Não toque aí. Não
pode abrir essa caixa. Deixe isso onde está. Por quê? Outro dia eu conto.
Lembra do mito de Pandora? Então, se fosse há algumas décadas um jovem como
você diria que era só um planeta de um filme famoso. Não sei nem porque guardo
isso ainda. Hoje não, outro dia vou estar mais disposto. Preciso me preparar.
Não é tão fácil falar sobre uma época complicada das nossas vidas. Amanhã,
então. Vamos continuar aqui, pegue aquelas caixas.
***
Foi um pouco antes do chamado
colapso de energia. Naquela época, tudo girava em função da energia, fosse
hidrelétrica ou de outras fontes. As pessoas escreviam em computadores,
aliás, faziam quase tudo pelo computador, se é que você me entende. Os livros
estavam deixando de existir porque havia pequenos objetos que armazenavam
milhares deles. No supermercado, as atendentes usavam pequenas armas que
jogavam luzes nas embalagens para saber o preço dos produtos e fazer a soma,
até porque as pessoas compravam tudo em grandes quantidades. No banco, podíamos
fazer operações financeiras em caixas automáticos. Os telefones eram móveis,
podíamos atender em qualquer lugar, enfim. Se tudo era mais fácil? Em princípio
sim, mas com as constantes quedas de energia as pessoas ficavam atordoadas,
todo um trabalho podia se perder. Sabe aquele poema do Drummond, o “Cota Zero”?
Ele questiona se quem parou foi o homem ou o automóvel. Ora, se pensarmos que
ao falar em automóvel ele está se referindo às máquinas, podemos dizer o
seguinte: ao dar o título de “Cota Zero” ao poema, está querendo dizer que
alguém está perdendo sua parte em alguma coisa. No caso, quem pode estar
perdendo seu lugar é o homem, já que a máquina estava, naquela época, tomando
conta de tudo. Isso que quando ele escreveu não existiam muitas novidades
tecnológicas ainda. Mas podemos questionar: se o homem para, a máquina também
para, afinal, quem faz o carro parar? Então, se o homem para, as máquinas,
consequentemente, vão parar. E se elas param, o homem também para. Era um
sábio, o Drummond, falando sobre a dependência do homem às máquinas, prevendo
o que iria acontecer.
Conheci sua avó em uma fila de
uma loja (esse era um dos lados ruins dessa época, existia fila pra tudo). Eu
estava comprando pilhas e baterias recarregáveis para meus aparelhos
eletrônicos. As crianças da minha geração só queriam brinquedos eletrônicos e,
depois de adultos, ainda encontravam em aparelhos eletrônicos seu divertimento.
Eu era vidrado em tudo que se referia à tecnologia e nem sei como hoje não
sinto falta de tudo aquilo. Músicas, filmes, livros, quadrinhos, conversas e,
principalmente, jogos. Tudo estava nos meus brinquedinhos, que já não tinham
nada de infantil.
Como você está percebendo, ela
me conheceu assim, sabendo do que eu gostava. Casou comigo sabendo que eu
seria ainda o crianção que ficaria boa parte do dia com seus brinquedinhos.
Então ela não deveria ter feito o que fez. Lógico, eu não estava dando a
atenção que ela merecia. Sempre fui muito fechado, ela sabia disso. E ela não
dava mostras de que estava chateada com isso. E quando mostrou sua revolta, foi
logo fazer aquilo?
Foi a primeira e última briga
que tivemos. Claro que eu fazia sexo com ela, senão você nem estaria aqui,
poxa! Mas você não tem ideia do que é estar jogando e passando de níveis,
aquilo deixava qualquer um vidrado, bater o recorde, superar os limites e
saber que você está vencendo uma máquina. Então, naquele dia, ela me chamava
pra cama e eu dizia para esperar, eu estava superando meus limites e tinha que
continuar jogando. Ela me chamou ainda duas vezes e eu não respondi. Depois
parecia ter desistido e eu continuava ali, estava indo cada vez mais longe, já
tinha matado não sei quantos personagens. Foi quando senti o game ser
tirado das minhas mãos de uma forma brusca e só o vi destruído com o impacto na
parede. Olhei para ela. Ela percebeu o ódio no meu olhar, mas senti também o
mesmo ódio nos olhos dela. Fechei os punhos e descarreguei no seu rosto tudo o
que eu não tinha descarregado no jogo.
Ela ficou em coma uns meses,
mantida viva justamente por uma máquina, e depois morreu. Permaneci preso
durante alguns anos. Nesse meio tempo, me privaram dos meus brinquedos, até
porque logo começou o colapso e os governos de todo o mundo passaram a proibir
a maioria dos aparelhos eletroeletrônicos. Recolheram tudo o que podiam e
incineraram. Mas alguns foram desviados e vendidos no mercado negro por preços
exorbitantes. Quando saí para o sistema condicional, a primeira coisa em que
pensei foi trabalhar para comprar um game. Só que demorei tanto para
isso que, quando consegui comprar, já nem tinha mais vontade de jogá-lo. Aliás,
tinha comprado um dos últimos modelos, que eu não conhecia por estar na prisão.
Cheguei a ligá-lo. Porém, quando vi o que ele continha, pensei na sua avó e
nunca mais voltei a tocá-lo.
Sei que nunca falaram sobre
isso com você. Nunca pensei que eu ia precisar contar também. Espero que não
fique chateado com seu avô, pois hoje sou outra pessoa. O colapso ajudou
bastante. Passei a ler bem mais e, consequentemente, dei outro valor para a
vida. Nessas alturas, você já sabe o que está guardado dentro da caixa, meu
neto, e o perigo que aquilo pode representar. Mas como confio em você, tenho
certeza de que não vai abri-la. Posso confiar?
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