Uma áspera literatura



A quarentena é algo estranho. Nunca passamos por uma situação como essa. No período da gripe A (também conhecida como gripe suína), há onze anos, tivemos uma antecipação das férias nas escolas. Nada mais do que isso. Lembro que na época comecei a ler “A dança do morte”, do Stephen King, mas não aguentei ir adiante naquele calhamaço. King é prolixo demais, porém é um gênio. Por isso o leio. E o romance tinha a ver com a gripe, o que justificava a sua leitura, em que pese o tom de apocalipse da obra, muito longe do que aconteceu.

O vírus atual nos aproxima desse clima de fim de mundo. Dá medo. No entanto, pesar de ser um pessimista, creio que vamos sair bem dessa. Bem não dá pra dizer, devido às mortes já ocorridas. Mas estou otimista em pensar que não seja ainda agora que uma doença chegue a dizimar a população do planeta. Veremos.

Das leituras que ando fazendo, a peste está em alta como tema, assim como outras doenças. O Bem X o Mal também aportou na minha mesa de leitura. Não que procure por esses assuntos. Talvez seja só coincidência com essa época, em que existem aqueles que veem nisso tudo um castigo divino por nossos pecados. Nessa linha segue “O vendedor de chuva”, romance de estreia de Fred Vidal, Editora Penalux, lançado em 2016.

O protagonista da história é Orozino, no início um menino que presencia a violência brutal contra sua família, morta por capangas de um fazendeiro inescrupuloso, e depois, adulto, vinga-se de cada um dos assassinos e estupradores, em cenas de alta tensão e rigor estético, que deixam o leitor com um embrulho no estômago. Tudo acontece num espaço de tempo incerto (provavelmente durante a primeira metade do século XX), na região entre o norte de São Paulo e o sul de Minas Gerais, bem no interior, onde a lei vinha dos mandos e desmandos dos donos das terras.

Em capítulos intercalados, conhecemos o drama da localidade de Taboquinha, que não vê água há muito tempo, embora outros lugares próximos da região tenham sido abençoados com a chuva. Seria um castigo de Deus, tal as pestes bíblicas? Ou seria algo do demônio, através da figura do “véio de ôio vazado”, “um curandeiro”, que teria “uma combina com o Cramunhão”?

O pacto fáustico, referência literária clara, mais precisamente no sertão mineiro, denota a influência de Guimarães Rosa, além do trabalho interessante com a linguagem dos personagens, tentando emular a fala do homem do interior, mas que peca em alguns momentos, como numa carta de um personagem cheia de erros de ortografia, porém bem pontuada, ou da uniformidade dessa fala para todos os personagens, inclusive o padre. O autor, no entanto, brilha em descrições belíssimas, como esta: “A aurora rasga a noite com seus dedinhos avermelhados, como uma criança afoita a abrir uma caixa de presentes”.

Usando das palavras do saudoso Paulo Bentancur no prefácio do livro (sugiro que seja lido após a obra, tendo em vista os detalhes do enredo que revela), como leitor tive uma bela surpresa, me senti uma “testemunha atônita diante deste romance a revelar Fred Vidal e sua áspera literatura”. Guardem o nome do autor, que deve estar preparando outra grande história.

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