Lendo Cortázar na quarentena
A ideia era reler o
conto “Casa tomada”, de Julio Cortázar, que, de certa maneira, lembra a
situação de pandemia que vivemos. Era intenção relacioná-lo com o inimigo que
nos ronda, na minha mania de ver tudo através da lente da literatura. Acabei,
porém, relendo todo os contos de “Bestiário”, primeiro livro oficial do autor
argentino, publicado em 1951. Um mago das palavras que nos enfeitiça.
Dois irmãos vivem
sozinhos em uma casa e começam a ouvir ruídos em alguns cômodos (“O som
vinha impreciso e surdo, como o tombar de uma cadeira sobre tapete ou um
abafado murmúrio de conversação.”) e
concluem que algumas peças da residência estavam sendo ocupadas, não se sabe,
pelo menos o leitor, por quem. Continuam seus afazeres diários (limpeza, leituras,
tricô) como se tudo fosse normal, apenas incomodados por terem de deixar coisas
importantes para trás. A ocupação continua até que ficam na rua, “apenas com o
que tínhamos no corpo”.
Bem, questiona o
leitor da coluna, mas isso é o contrário do que está acontecendo, afinal temos
que ficar confinados em casa e não sair dela. Pois eu amplio a leitura
interpretando a casa como o mundo. Há inimigos invisíveis que se aproximam aos
poucos, mexendo com o nosso cotidiano, nos tirando coisas importantes, sem termos
formas de eliminá-lo, restando-nos apenas fugir. Nossa casa também é o corpo,
em que o inimigo entra sem nos darmos conta, até que percebemos alguns
sintomas, mas aí pode ser tarde demais, já tomou conta de tudo.
Posso estar viajando,
imaginando coisas, mas a quarentena parece que nos faz isso, saímos da
normalidade, percebemos como a vida é estranha e o que seria um absurdo agora
se torna comum. Julio Cortázar, no que denomina literatura fantástica (“Quase
todos os contos que escrevi pertencem ao gênero chamado fantástico por falta de
nome melhor, e se opõem a esse falso realismo que consiste em crer que todas as
coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo
filosófico e científico do século XVIII (...)”, afirmou no ensaio “Alguns
aspectos do conto”), percebia essas brechas de anormalidade na normalidade e,
com um talento ímpar de manipulador de palavras, transformava tudo em arte.
“Casa tomada” surgiu de um sonho do escritor, mas a crítica relacionou o enredo
como uma alegoria do peronismo que chegava à Argentina nos anos 40. Cortázar
não descartava essa leitura, embora não tinha isso em mente quando escreveu o
conto.
As situações
estranhas, irreais (ou surreais), se sucedem nas demais narrativas: um homem,
tradutor como Cortázar, vomita coelhinhos, em “Carta a uma senhorita em Paris”;
no conto “Distante”, a jovem Alina, que gosta de criar palíndromos e anagramas,
encontra uma outra Alina em uma ponte (há muitas pontes nos contos
cortazarianos) em Budapeste e troca de vida com ela; a mulher que entra em um
ônibus e recebe olhares estranhos do demais passageiros, do motorista e do
cobrador; a criação numa fazenda de animais chamados mancúspias (que só existem
na imaginação de Cortázar); a jovem, “viúva” de dois namorados, faz bombons de
conteúdo duvidoso para o terceiro no conto “Circe” (referências mitológicas
também é uma constante na obra de Cortázar); em “As portas do céu”, um homem
pensa que viu sua amada morta dançando tango em um cabaré.
O conto que fecha e
também empresta o nome ao volume tem ressonâncias com o primeiro, numa
circularidade cara ao autor. Os moradores e visitantes de uma casa, quando vão
percorrer seus cômodos, precisam ser alertados, pelas pessoas que conhecem o
perigo, sobre onde está o tigre, animal exótico, com o qual já estão de certa
forma acostumados. O costume, porém, pode ser muito perigoso, assim como ouvir
quem não é especialista. Quando algo não nos surpreende, afrouxamos as defesas,
e a morte pode ser o resultado. Ouvir, portanto, os alertas de quem entende
salva vidas.
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