Ledo engano
Alguns dos contistas do meu panteão pessoal me enganaram
quando publicaram seus contos completos. Recentemente, Lygia Fagundes Telles, a
rainha do meu reino literário, lançou “Os contos”, que a editora afirma, na
sinopse, que são seus contos completos “reunidos pela primeira vez em um único
volume”. Ao ler o índice, minha decepção: onde estavam os primeiros livros da
autora? Acontece que ela sempre renegou as primeiras obras, os dois primeiros
livros e alguns contos de outros quatro, alegando que são obras imaturas. Em
“Contos e novelas reunidos”, Sérgio Sant’Anna, morto recentemente devido ao
coronavírus, deixou de fora algumas histórias de “O sobrevivente”, “O concerto
de João Gilberto no Rio de Janeiro” e talvez de outros livros. Só vim a saber
muito tempo depois de ter comprado o exemplar, que esconde essa informação.
Outro Sergio, o Faraco, também engana o leitor com seus
“Contos completos”, atualmente na 3ª edição pela L&PM. Sempre digo, os
escritores são mentirosos. Mentem até no título de seus livros. Exigente com
sua própria obra, assim como seus colegas citados, o autor deixa de fora contos
antigos e também mais recentes, primando pela qualidade literária. Isso, pelo
menos, ele deixou claro em várias entrevistas. Como leitor, porém, gostaria de
ler todos os contos dos meus ídolos literários. No entanto, como o mundo é
injusto, as raras edições que contêm os filhos renegados desses pais
desnaturados são vendidas por preços exorbitantes na internet.
Este preâmbulo é uma forma enviesada deste crítico literário
insensível prestar uma homenagem ao Sergio Faraco, que fez 80 anos (estes sim
completos) no último dia 25 de julho (coincidentemente, no Dia Nacional do
Escritor). Essencialmente contista, mas com incursões na crônica e na
memorialística, Faraco publicou vários livros, em que reescreveu e republicou
textos de obras anteriores. “Contos completos” surgiu para marcar o fim de sua
atividade de escrita, em 1995, mas a retomou depois com “Rondas de escárnio e
loucura” e alguns outros inéditos. O que não está no livro, segundo o próprio
Faraco me informou por e-mail, quando lhe solicitei os índices dos seus
primeiros livros esgotados para uma pesquisa, “foi considerado inútil e
faleceu, ou seja, está bem morto e enterrado. Foi bem proveitoso dar uma olhada
em coisas tão antigas, chego à interessante conclusão de que eu já era ruim
naquela época”. Esta exigência estética é que o faz ser um grande contista.
“Contos completos”, portanto, traz obras-primas, como
“Guapear com frangos”, em que “aquele López” tenta levar o corpo de um tropeiro
que morreu afogado no rio, havia já três dias, para ter um velório digno com a
família, porém enfrenta dificuldades na empreitada, enfrentando chuva, o mato
cerrado, o cadáver se decompondo e sendo atacado por urubus e outros animais: “Peixes,
moscas, tatus, ratos, aves carniceiras comiam o bucho, as coxas e os bagos de
Guido Sarasua”. Uma narrativa densa, que não sai da memória do leitor e
representa a temática da primeira parte do livro, com enredos que se passam na
fronteira.
A segunda parte consta de contos que tratam da descoberta do
mundo por crianças e adolescentes. Em “Uma casa ao pé do rio”, temos a
iniciação sexual de um guri com a mulher que dormia com qualquer um que a
presenteasse com “uma réstia de cebolas, ovos e até com menos”. Ele leva para
ela pãezinhos. Na terceira parte, de histórias urbanas, podemos citar “Dançar
tango em Porto Alegre”, em que um homem e uma mulher se conhecem em um trem. Ela
é casada, tem filho, mas nada além disso os impede de ocuparem sozinhos uma
cabina: “Começamos devagar, desajeitados, não é fácil de se amar quando o amor
é eleito para remediar”. É um dos contos eróticos mais bem elaborados da
literatura brasileira.
Ludibriado por Sergio Faraco, este leitor faz questão de ler
e reler sua obra, mesmo incompleta. E faz um convite para que outros leitores
sejam enganados também.
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