Um mapa do silêncio



Eu o considero o nosso escritor maior, pelo menos aqui da região. Mora no município de Gramado Xavier, portanto, no interior do interior do Rio Grande do Sul. Mas é universal, mesmo sem o reconhecimento que merece. Eu devia para ele e para mim mesmo um texto sobre sua obra. Mauro Klafke (nascido em Santa Cruz do Sul, em 1952) é um dos escritores com quem mais aprendo em conversas em que mais presto atenção  do que falo, aprendendo sobre Literatura e sobre a vida, ouvindo sua voz, que lembra a do meu saudoso pai, pontuada por momentos de silêncios reflexivos de um sábio.

Já escreveu livros de poemas do mais alto grau artístico, estreando com “Baixo relevo”, em 1983. Depois escreveu contos mostrando um domínio narrativo e um olhar sobre as cidades do interior e seus moradores que só um grande mestre tem, como em “Apenas um jogo”, de 2014, que, segundo Aldyr Garcia Schlee (cuja memória está sendo vilipendiada pelo mau uso da camiseta da Seleção, criada por ele), nos mostra “um autor definido e definitivo”. E ainda escreveu um romance que, com experimentação na estrutura narrativa e alternância de narradores, me surpreendeu. Trata-se de “A guardiã do fogo – uma saga dos Monges Barbudos” (Editora Singram, 187 páginas), publicado em 2016.

O episódio dos Monges Barbudos é real, inclusive as fotos de capa e quarta capa trazem imagens dos envolvidos. Foi um movimento messiânico que aconteceu em Soledade, na década de 30, e envolveu agricultores que seguiam os ensinamentos de um andarilho que dizia ser o monge João Maria, considerado um santo no sul do país, uma figura mítica. Assim como no conflito de Canudos, na BA, os comerciantes locais e os donos de terras, sentindo-se prejudicados pelas atividades dos monges barbudos, que não cultivavam o fumo, por exemplo, denunciaram os fanáticos, e o desfecho foi trágico.

Klafke, no romance, se utiliza de personagens reais, como Deca França, o líder dos agricultores, e ficcionais, para retratar um fato tão perturbador e ainda não muito bem esclarecido na História gaúcha. Um dos narradores é Andressa, a guardiã mencionada no título, que além de ser a responsável por manter vivo o fogo aceso pelos antepassados, mantém também acesa a chama da memória da história do povo, como se fosse uma narradora do mito, relatando a história a um “moço”. O outro narrador é Auri, numa chave mais erudita, pois reflete sobre a criação literária e questões filosóficas e sociológicas, fazendo o leitor questionar o que é ou não verdade na narrativa ou no que se pode acreditar no que nos é contado: “Entre a realidade e o ato de contar há muitas versões”.

Por isso a escolha do autor por gêneros textuais distintos para compor o romance: a prosa poética e poemas em verso, o ensaio a la Montaigne e a narração propriamente dita, tudo marcado por fontes tipográficas diferentes. Mas também é feita de silêncios, que assim como os silêncios que intercalam a fala do escritor, são momentos em que o leitor constrói a história junto com quem as conta. Como diz um dos narradores: “Uma narrativa é feita de inúmeras lacunas porque a vida é feita de lacunas”.

Mauro Klafke, que também é professor de Geografia, reescreve, a partir dos mapas do acaso, a História do que poderia ter sido e que não foi. Uma utopia (um não-lugar) de pequenos agricultores que enfrentaram a intolerância e a ganância de quem pode mais. Um romance que merece um bom lugar no mapa da Literatura. 

 

Comentários

Mensagens populares