Um bom fruto da nova safra literária

 


“Torto arado” (Todavia, 264 páginas) é um romance que nos emociona, que nos faz sentir indignação, que nos faz refletir e que nos enreda, pois as tramas tecidas pelo relativamente jovem autor baiano, Itamar Vieira Júnior, prendem o leitor, assim com os personagens estão presos à terra das fazendas baianas, assim como o visgo do cacau das obras de outro escritor da Bahia, este mais velho e o maior de todos, prende os trabalhadores.

É inevitável para um crítico do “sul” a comparação com Jorge Amado no que se refere ao misticismo, à abordagem dos personagens negros que vivem submetidos aos grandes fazendeiros, mesmo décadas depois da escravidão, e a um engajamento social que apenas belisca a militância panfletária (e que por isso não deixa a obra perder a qualidade literária). Vieira Júnior dá voz justamente a esses humanos que não tinham voz, em que pese as narradoras da história terem perdido suas vozes, literal ou metaforicamente, relatando de forma mais real possível, enquanto Jorge Amado romantizava seus personagens, por mais que seu intuito fosse também retratar o real.

Não posso deixar de mencionar outro baiano de minha predileção que é Herberto Sales, geograficamente mais próximo da narrativa de Itamar Vieira Júnior, pois as personagens de “Torto Arado” também percorrem os marimbus da região da Chapada Diamantina, presentes nos enredos do autor de “Cascalho” e “Além dos marimbus”, outros gigante no romance, porém escanteado nos últimos tempos.

A história se passa na Fazenda Água Negra, onde os descendentes de escravos sobrevivem trabalhando em terras alheias: “Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei, mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os escravos de trabalhadores e moradores”. Na primeira parte, a narradora é Bibiana, que conta como ficou muda depois de ela e sua irmã, Belonísia, terem encontrado uma faca que pertencia à avó, Donana. “Somente uma das filhas teria a fala e deglutição prejudicada. Mas o silêncio passaria a ser nosso mais proeminente estado a partir desse evento.” O pai, Zeca Chapéu Grande, é um curandeiro e recebe os encantados, os espíritos a que se costuma chamar de entidades. Junto com a mãe Salustiana e dois irmãos, a família busca manter o pouco que colhe, enquanto o dono da fazenda não confisca a parte que considera sua. Numa linguagem que foge do recurso simplista de reproduzir a fala de pessoas simples (sabe-se depois que ela vai ser professora), Bibiana conta sobre a vida das duas, principalmente a descoberta do amor e a disputa pelo mesmo homem, o primo Severo.

Já na segunda parte, a narradora é Belonísia. Com o ponto de vista distinto, muda também a irmã que ficou muda, quebrando a expectativa do leitor. A história passa a pesar mais com os conflitos, num plano coletivo, entre os grandes fazendeiros e os trabalhadores que desejam permanecer na terra em que sempre viveram, resultando num desfecho trágico e, num plano mais pessoal, as mulheres sofrem com a violência doméstica. Na terceira parte, uma encantada que perdera seu “cavalo” é quem conta a história, revelando os fatos que ficaram escamoteados, os mistérios que a família escondia. O enredo ganha um tom de realismo mágico e o final mais uma vez surpreende o leitor.

O título da obra se refere a um instrumento de trabalho do velho Zeca: “Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada.” É nessa terra revirada que viviam e vivem os personagens, brasileiros que sofreram e sofrem com os desmandos dos poderosos, trabalharam e trabalham para sobreviver e que se apegam a forças de outro mundo para tentar alcançar sua dignidade. “Torto arado” foi uma semente lançada em 2019 e que já rendeu bons frutos ao escritor, em meio a uma lavoura que ainda precisa ser melhor cultivada e diversificada, que é a literatura brasileira.

(Resenha publicada também no site "Crônicas cariocas": https://cronicascariocas.com/cultura/literatura/um-bom-fruto-da-nova-safra-literaria/.)

Comentários

Mensagens populares