Jogando com Cortázar
Não é à toa que um de seus livros de contos se chama “Final
del juego”. Porém seus jogos literários não têm finais. Ou eles estão em
aberto, como no próprio conto que intitula e fecha a obra, ou o leitor volta ao
seu início, num eterno retorno, como em “Continuidad de los parques”, que abre
o livro. É um conto que nunca termina e sempre recomeça. O leitor corre o
risco, inclusive, de jamais deixar de lê-lo.
Nesse jogo, jogamos com o acaso. Em “Uma flor amarilla”, por
exemplo, o protagonista se depara com um jovem que se parecia com ele próprio
na mesma idade e que passa por situações idênticas a que ele passou. Isso,
claro, se se pensar o conto numa leitura realista. Cortázar, porém, era um
escritor do fantástico, em que os fatos reais beiram o estranho, o insólito.
Então, não há nada de acaso, mas sim o personagem encontra o seu duplo, numa
espécie de falha da Matrix. O que faríamos se encontrássemos nosso duplo? Não
sei o que eu faria, mas imagino o que ele faria e relato isto em um conto que
publiquei em um de meus livros, “Cacos e outros pedaços”.
A releitura dos mitos, que no livro anterior, “Bestiário”,
se deu com o conto “Circe”, agora é retomada com “Las ménades”, em que um Orfeu
moderno é destroçado e devorado pelos seus fãs. O tempo é reajustado em
“Sobremesa”, afinal, como se pode ir a uma festa cujo convite só seria feito
alguns dias depois?
Os sonhos não são apenas sonhos (“El río” e “Relato con un
fondo de água”), de uma porta escondida atrás de um armário em um hotel podem
sair sons estranhos como um choro de um bebê (“La porta condenada”), vestir uma
blusa pode ser extremamente perigoso, ainda mais quando a mão se volta contra o
próprio dono (“No se culpa a nadie”), os venenos, quando nas mãos de uma
criança com ciúmes, podem não servir apenas para matar formigas (“Los venenos”,
conto autobiográfico, segundo Cortázar).
O autor nos ludibria com a ambiguidade recorrente em todos
os relatos, nos deixando perplexos, sem respostas. O homem que se transforma
numa espécie de salamandra que observava num aquário não seria na verdade a
própria salamandra imaginando ser o homem que a observava, no conto “Axolotl”? E
o motociclista que na cama do hospital, entre o sono e a vigília, sonhava estar
numa mesa sacrificial dos antigos astecas, não seria na verdade a vítima que
está prestes a ser morta sonhando que montava um cavalo de rodas numa cidade estranha,
cheia de luzes, como se lê em “La noche boca arriba”?
Releio “Final del juego” e, como um dos protagonistas de
“Continuidad de los parques”, fico com a sensação de que estou dentro do livro
que estou lendo. Sinto que a qualquer momento posso ser apunhalado pelas costas,
envenenado, devorado, afogado, abandonado, metamorfoseado, enfeitiçado, nocauteado,
assassinado, sacrificado. Ainda bem que é tudo ficção. Ou não?
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