A livraria dos não-escritos
Hoje escrevo sobre livros que nunca li. “Como assim
nunca leu?”, perguntam os meus poucos – e infiéis – leitores. Na verdade, não
apenas eu como ninguém jamais os leu, pelo simples fato de eles não existirem.
“Pronto, piorou!”, pensa o único leitor que ainda está aqui. Fique, por favor,
e leia. Talvez agora eles passem a existir, pelo menos na nossa imaginação.
Livros que não existem, mas poderiam ter existido,
é a premissa de um conto que li na adolescência, mas depois sumiu e demorei
para encontrá-lo. Não sei se o leitor já passou por situações semelhantes:
trechos de uma música escutada há muitos anos surgem do seu inconsciente, mas
você não consegue se lembrar de quem é; o mesmo acontece com uma cena de um
filme, cujo nome não lhe vem à mente; ou, então, fragmentos de uma história que
foi lida talvez em uma biblioteca escolar fazem você quebrar a cabeça para
saber em que livro ela poderia estar.
A lembrança desse conto perdido foi despertada pela
leitura de uma das histórias em quadrinhos da série “Sandman”, de
Neil Gaiman. No número 22, “A Estação das brumas” (editora
Conrad), aparece a biblioteca do reino de Sandman, o Sonhar, cuidada
pelo servo Lucien. “É uma biblioteca muito incomum. Aqui estão todas as
histórias que um dia foram sonhadas”, diz o bibliotecário. “Nesta seção, por
exemplo, estão romances que seus autores nunca escreveram ou terminaram, exceto
nos sonhos.” Na estante aparecem livros como “A estrada perdida”, de
J.R.R. Tolkien, “A viagem de Alice além da lua”, de Lewis
Carroll e “A consciência de Sherlock Holmes”, de Conan Doyle.
Pesquisando no São Google, encontrei uma referência
à história de Neil Gaiman relacionando-a com o conto “A livraria das obras
inéditas”, escrita em 1941 pelo norte-americano Nelson Bond e publicada no
Brasil na antologia “Maravilhas do conto fantástico”, da editora
Cultrix, há muito tempo esgotada, e que chegou a minha biblioteca de presente do
meu tio que, infelizmente, foi vítima neste ano da Covid-19. Já neste século, o
conto recebeu uma nova tradução na coletânea organizada por Bráulio
Tavares, “Contos fantásticos no labirinto de Borges” (editora
Casa da Palavra), com o título mais simples, “A livraria”, de acordo com o
original em inglês. Encontrei, assim, em duas versões, o conto perdido.
Robert Marston, escritor que não conseguia concluir
seu romance, sentia uma estranha fascinação por uma livraria pela qual passava,
mas nunca entrava. Certa tarde, depois de mais uma vez desistir de continuar
escrevendo, decidiu conhecer o estabelecimento. O primeiro livro que viu já lhe
chamou a atenção: “Agamenon”, de Shakespeare! “A brasa sempre
adormecida no coração do bibliófilo acendeu-se, transformando-se num incêndio.”
Pensando que fosse uma fraude ou então uma grande descoberta, se espantou ainda
mais ao ver livros como “O olho da gárgula”, de Edgar Allan
Poe e “Os trogloditas”, de Julio Verne. Junto desses
exemplares estava o seu próprio romance, “Os vencidos”, justamente
aquele que não conseguia escrever. “Não havia mediocridades naquele livro, não
havia nem fraquezas nem tropeços, nem confusão de ideias. Cada frase era
perfeita. Não havia palavra, ou sentença, ou ideia, que não brilhasse numa
pureza encantadora.” Era o livro perfeito, portanto, o livro que ele sempre
idealizara, o seu melhor trabalho, mas que só existia ali, na livraria dos
não-escritos.
Cada leitor pode fazer sua lista e encomendar os
livros para o livreiro. Eu, por exemplo, gostaria de ler o livro de
contos “Jogando amarelinha nas calçadas do Rio de Janeiro”, de
Julio Cortázar, em que um intelectual argentino fica dividido entre as questões
sociológicas da violência e o desejo por uma bela mulata carioca. Também o
romance “Numa repartição pública brasileira”, de Franz Kafka, em
que a burocracia e as filas que enfrentamos são pintadas com tintas escuras
pelo escritor do absurdo. Não poderia faltar Machado de Assis, com “Memórias
póstumas de Capitu”, em que aparece solucionado o famoso enigma (ou
não). E, para fechar a lista, “Ensaio sobre a estupidez”, de
José Saramago, ambientado na câmera de deputados de um país com nome de árvore,
e “Olhai os buracos na estrada”, de Erico Verissimo, título
inspirado em um versículo da Bíblia dos Motoristas: “Olhai os buracos na
estrada, ninguém os vê nem os tapa, só se pagarmos pedágio.”
E tu, leitor (ainda estás aí?), quais obras
gostarias de ler?
(Uma
primeira versão deste texto foi publicada na minha extinta coluna literária no
jornal Gazeta do Sul, em 6 de dezembro de 2010: https://cassionei.blogspot.com/2010/12/livraria-dos-nao-escritos.html )
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