Viva, mas não se deixe morrer

 

                                

 

“Deixei a fatia/Mais doce da vida/

Na mesa dos homens/De vida vazia”, Chico Buarque

 

Neste momento complicado em que o mundo vive, que para alguns é algo fabricado por forças “globais”, viver a vida tornou-se secundário ou, pelo menos, deveria ser. Para tentar controlar uma epidemia e evitar a morte das pessoas, é necessário, paradoxalmente, se recusar a viver, aqui, claro, significando o “aproveitar a vida”.

“Vida que segue”, diz certo mandatário que leva a população governada por ele à morte com argumento falso de que as pessoas precisam viver, é uma expressão que não cabe nos dias que seguem. Não se pode, por enquanto, fazer tudo o que se fazia. A vacinação, andando em marcha lenta, não nos permite voltar à vida normal. O vírus continua vivendo enquanto estamos morrendo.

Muitos gostariam de, nos bares da vida, aglomerar e cantar como Gonzaguinha: “viver e não ter a vergonha de ser feliz”. Confesso, porém, que me sinto envergonhado em extravasar felicidade enquanto milhares de pessoas vão perdendo suas vidas, muitas vezes depois de pegar o vírus de outras que se descuidam em aglomerações porque alegam que para viver precisam festejar e beber com mais gente.

Saber que “viver é muito perigoso”, frase recorrente do personagem Riobaldo, no romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, não quer dizer, porém, que devemos baixar a guarda e deixar o inimigo vencer. Já que “são demais os perigos desta vida”, como cantaram o poetinha Vinícius de Moraes e Toquinho, todo cuidado ainda é pouco.  

Viver a vida intitula uma das grandes obras do cinema mundial, de 1962. Jean-Luc Godard, o diretor, hoje vivendo a vida nos seus 90 anos de idade, relata de forma visual, literária e filosófica, a vida de uma mulher, Nana, que é levada à prostituição depois uma frustrada tentativa de viver outra vida que não a suposta tranquila vida que tinha como esposa e mãe. Em uma de tantas cenas em que as imagens provocativas do cineasta cedem lugar à fala, Nana diz a uma amiga: “Eu acho que somos sempre responsáveis pelo que fazemos. Eu subo minha mão, sou responsável. Viro para a direita, sou responsável. Estou triste, sou responsável. Fumo, sou responsável. Fecho meus olhos, sou responsável. Eu esqueço que sou responsável, mas sou responsável”. Não por acaso, sua escolha de vida acaba levando-a a um trágico final e a câmera que filma sua morte se inclina, filmando o chão, como se fosse o espectador envergonhado por saber qual seria o destino da personagem e por não ter feito nada para evitar.

Viver a vida não deve nos levar a morrer. Sejamos responsáveis, portanto, pois quem deveria ser responsável por nós não o é, já que seu lema parece fazer parte de outro título do cinema: “viva e deixe morrer”. Vamos mudar essa sentença e dizer: viva, mas não se deixe morrer.

Cassionei Niches Petry – professor



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