O apocalipse da Literatura

 



 O romance Não há nada lá, de Joca Reiners Terron, começa no dia do meu aniversário, 2 de agosto, no ano de 1997, exatamente quando atingi a maioridade. Trabalhava num motel nessa época. Meu primeiro emprego de carteira assinada. Auxiliar de escritório, subgerente, tinha como uma das funções verificar o funcionamento dos equipamentos dos quartos, bem como fiscalizar a limpeza realizada pelos funcionários. Enquanto fazia meu trabalho, que sempre achei estranho, ficava imaginando os frequentadores do motel, geralmente casais que saíam da rotina e desejavam apimentar a relação, mas também muitos homens e mulheres que traíam seus parceiros e por isso servíamos para acobertar as puladas de cerca, às vezes atendendo telefonemas de esposas ciumentas e negando terminantemente que determinado carro estava nas dependências.

 O que essa parte da minha vida tem a ver com a obra? Talvez nada, talvez tudo, talvez só a data marcante, talvez o ambiente peculiar onde trabalhei. Joca é um escritor que sabe tirar dos interstícios do cotidiano a melhor Literatura. Sabe ver o estranho, o bizarro, o surreal que pode estar tão visível e que paradoxalmente por isso não enxergamos. E põe isso na sua Literatura. Minhas experiências inusitadas no motel foram pouco usadas nos meus contos e romances, isso que eu já esboçava algumas histórias naquele período. Falta-me, no entanto, talento. Joca o tem de sobra e estamos falando de seu primeiro romance, lançado em 2001.

No dia 2 de agosto de 1997, morreu William S. Burroughs, que no romance é Guilherme de Burgos. O autor de Almoço nu, um dos romances mais amalucados que já li, joga um livro para cima (“Pergunto-me como seria a morte do livro. Diga, como morrem os objetos perfeitos?”), emulando o macaco de 2001: uma odisseia no espaço, e o objeto se transforma num Tesseract, um cubo que as novas gerações conhecem pelos filmes da Marvel e ilustra a capa da 2ª edição do romance, da Companhia das Letras, selo Má Companhia. E pulando no tempo e espaço, o leitor se vê transportado para testemunhar momentos da vida, mas recontados de forma ficcional, de escritores, um músico, um pistoleiro, um papa e até Lúcia, uma das crianças que viram a imagem e ouviram os 3 segredos de Nossa Senhora de Fátima (e aqui vai mais uma coincidência pessoal: minha mãe é devota da santa). Diversos personagens, reais, como Fernando Pessoa, alguns com o nome ou apelidos aportuguesados, como Gui-o-Guri (Billy the Kid), parecem ser criação original do autor, tal as situações estranhas que vivem em 7 histórias aparentemente diferentes, relacionadas a um livro com 7 selos estampados na capa, com provável relação com os 7 selos do Apocalipse (o 7, ah, o número 7!).

Assim como o último romance sobre o qual escrevi aqui no blog, A nota amarela, de Gustavo Melo Czekster, os capítulos também são numerados de forma decrescente. Além disso, as páginas também o são. E os capítulos, por sua vez, são curtos, bem curtos, intercalando as 7 histórias, 7 encontros entre os personagens (além dos citados, temos Rimbaud, Torquato Neto, Jimi Hendrix, Raymond Roussel, Papa Pio XI, Isidore Ducasse, Baudelaire, Fernando Pessoa e Aleister Crowley) e os objetos: o livro e o cubo. Destaca-se ainda o aspecto gráfico, com algumas ilustrações e reproduções do que seriam as páginas do livro dos 7 selos, com frases que se apagam, como se a tinta estivesse gasta, borrando, mas ainda se consegue ler alguns aforismos como “Escritor e Leitor, os dois estão no livro e ambos estão morrendo”, assim como há reprodução de cartas com assinatura dos escritores.

Há passagens que hoje causariam polêmica, como a suposta relação sexual entre Raimundo Roussel (Raymond Roussel) e o Papa Pio XI, descrita assim numa carta do poeta francês: “Disposto a desvelar tal segredo, não vi outra saída senão submeter-me aos jogos sensuais de Sua Santidade. Agarrei-a por trás, arrancando-lhe a delicada peça que ainda subsistia, e, enquanto provinham de sua boca pequenos guinchos de prazer e dor, ergui seu derriére para então aproximar-me com o ardor de que fui capaz. Instantes após aquele resfolegamento natural ao coito em que ambos os contedores esfregam-se, regulados por espasmos e pulsações que esvaem-se aos poucos, quedamos inertes sobre o assoalho”. Ao que parece, no entanto, teria sido uma alucinação de Roussel causada por uso de barbitúricos. Mas que é hilário imaginar um papa de calcinha rosa, ah, isso é!

O romance lembra muito Enrique Vila-Matas, de quem Terron é fiel leitor, ao colocar a Literatura como grande personagem. Perpassa na obra a morte da Literatura, do Livro, o apocalipse que nós leitores tememos. Por sorte, bons escritores como Joca Reiners Terron continuam escrevendo (o autor está lançando O riso dos ratos, seu novo romance, pela Editora Todavia), não deixando a Literatura desaparecer.


Outra resenha sobre o autor aqui no blog: 

https://cassionei.blogspot.com/2011/02/terron-no-tracando-livros-de-hoje.html

Um adendo à resenha: 

https://cassionei.blogspot.com/2011/02/caim-e-abel-eram-gemeos.html

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