O apocalipse da Literatura
O que essa parte da
minha vida tem a ver com a obra? Talvez nada, talvez tudo, talvez só a data
marcante, talvez o ambiente peculiar onde trabalhei. Joca é um escritor que
sabe tirar dos interstícios do cotidiano a melhor Literatura. Sabe ver o
estranho, o bizarro, o surreal que pode estar tão visível e que paradoxalmente
por isso não enxergamos. E põe isso na sua Literatura. Minhas experiências inusitadas
no motel foram pouco usadas nos meus contos e romances, isso que eu já esboçava
algumas histórias naquele período. Falta-me, no entanto, talento. Joca o tem de
sobra e estamos falando de seu primeiro romance, lançado em 2001.
No dia 2 de agosto de 1997, morreu William S. Burroughs,
que no romance é Guilherme de Burgos. O autor de Almoço nu, um dos romances mais amalucados que já li, joga um livro
para cima (“Pergunto-me como seria a morte do livro. Diga, como morrem os
objetos perfeitos?”), emulando o macaco de 2001:
uma odisseia no espaço, e o objeto se transforma num Tesseract, um cubo que
as novas gerações conhecem pelos filmes da Marvel e ilustra a capa da 2ª edição
do romance, da Companhia das Letras, selo Má Companhia. E pulando no tempo e
espaço, o leitor se vê transportado para testemunhar momentos da vida, mas
recontados de forma ficcional, de escritores, um músico, um pistoleiro, um papa
e até Lúcia, uma das crianças que viram a imagem e ouviram os 3 segredos de
Nossa Senhora de Fátima (e aqui vai mais uma coincidência pessoal: minha mãe é
devota da santa). Diversos personagens, reais, como Fernando Pessoa, alguns com
o nome ou apelidos aportuguesados, como Gui-o-Guri (Billy the Kid), parecem ser
criação original do autor, tal as situações estranhas que vivem em 7 histórias aparentemente
diferentes, relacionadas a um livro com 7 selos estampados na capa, com
provável relação com os 7 selos do Apocalipse (o 7, ah, o número 7!).
Assim como o último romance sobre o qual escrevi aqui no
blog, A nota amarela, de Gustavo Melo
Czekster, os capítulos também são numerados de forma decrescente. Além disso,
as páginas também o são. E os capítulos, por sua vez, são curtos, bem curtos, intercalando
as 7 histórias, 7 encontros entre os personagens (além dos citados, temos
Rimbaud, Torquato Neto, Jimi Hendrix, Raymond Roussel, Papa Pio XI, Isidore
Ducasse, Baudelaire, Fernando Pessoa e Aleister Crowley) e os objetos: o livro
e o cubo. Destaca-se ainda o aspecto gráfico, com algumas ilustrações e
reproduções do que seriam as páginas do livro dos 7 selos, com frases que se
apagam, como se a tinta estivesse gasta, borrando, mas ainda se consegue ler alguns
aforismos como “Escritor e Leitor, os dois estão no livro e ambos estão
morrendo”, assim como há reprodução de cartas com assinatura dos escritores.
Há passagens que hoje causariam polêmica, como a suposta relação
sexual entre Raimundo Roussel (Raymond Roussel) e o Papa Pio XI, descrita assim
numa carta do poeta francês: “Disposto a desvelar tal segredo, não vi outra
saída senão submeter-me aos jogos sensuais de Sua Santidade. Agarrei-a por
trás, arrancando-lhe a delicada peça que ainda subsistia, e, enquanto provinham
de sua boca pequenos guinchos de prazer e dor, ergui seu derriére para então aproximar-me com o ardor de que fui capaz.
Instantes após aquele resfolegamento natural ao coito em que ambos os
contedores esfregam-se, regulados por espasmos e pulsações que esvaem-se aos
poucos, quedamos inertes sobre o assoalho”. Ao que parece, no entanto, teria
sido uma alucinação de Roussel causada por uso de barbitúricos. Mas que é
hilário imaginar um papa de calcinha rosa, ah, isso é!
O romance lembra muito Enrique Vila-Matas, de quem Terron é
fiel leitor, ao colocar a Literatura como grande personagem. Perpassa na obra a
morte da Literatura, do Livro, o apocalipse que nós leitores tememos. Por
sorte, bons escritores como Joca Reiners Terron continuam escrevendo (o autor
está lançando O riso dos ratos, seu novo
romance, pela Editora Todavia), não deixando a Literatura desaparecer.
Outra resenha sobre o autor aqui no blog:
https://cassionei.blogspot.com/2011/02/terron-no-tracando-livros-de-hoje.html
Um adendo à resenha:
https://cassionei.blogspot.com/2011/02/caim-e-abel-eram-gemeos.html
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