Diário crônico: O sol brilha. Mas e daí?
Diário crônico, uma crônica diária, por Cassionei Niches
Petry (I)
O sol brilha. Mas e daí?
“Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que
prestemos atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós”. Assim
Carlos Drummond de Andrade inicia a apresentação do livro de crônicas “Fala,
amendoeira”. Apesar de não ter essa atividade como ofício, pelo menos não no
sentido de atividade remunerada, teimo em todos os dias rabiscar, rascunhar,
experimentar alguma coisa no papel, ou melhor, na tela em branco do computador,
tentando estabelecer alguma reflexão sobre o tempo presente. É a característica
da crônica, essa palavra que vem justamente de Chronos, o Tempo na Mitologia
Grega, que erroneamente ligamos ao deus Cronos, o mais jovem dos Titãs, que
devorava seus filhos depois de nascer para que nenhum deles o tirasse do seu
trono. Um erro, no entanto, que faz sentido.
O tempo nos devora, passa rápido, num piscar de olhos vamos
da juventude à maturidade e, de repente, pronto, morremos. O tempo só não passa
quando não queremos que ele passe ou quando estamos esperando algo que demora
para acontecer. Pelo menos a sensação é de que o tempo parou. Nos estudos de
uma narrativa, chamamos de tempo psicológico, que se contrapõe ao aparente
pleonasmo do tempo cronológico. Mas “o tempo não para”, como cantou Cazuza, nos
atropela como um caminhão desgovernado, com o perdão do clichê. Poxa, recém passei
dos 20 e já estou com mais de 40 anos! Acontece que o tempo “sabe passar, e eu
não sei”, como dizem os versos de Aldir Blanc na Voz, com letra maiúscula, de
Nana Caymmi, “ele ri” de mim, segurando a barriga maior do que a minha por
causa dos filhos que engoliu.
Quanto ao prestar atenção a natureza, assim como Drummond, “abrindo
a janela matinal, o cronista reparou no firmamento” e viu o tempo fechado, aqui
no sentido de clima, o sol ainda escondido pelo nevoeiro. Tempo fechado também
está na política, na polarização que nos está destruindo, nas decisões
desumanas dos nossos governantes durante a pandemia, esta que tentou fazer o
tempo parar e conseguiu fazê-lo por um breve tempo. No mundo, mais precisamente
na “terra do sol nascente”, sol que aqui ainda não nasceu enquanto escrevo
estas linhas, o tempo parece que parou mesmo, ou retrocedeu, afinal, ver gente
se abraçando e comemorando vitórias me parece algo anacrônico, afinal vivemos
um tempo de distanciamento social e tristeza por tantas mortes provocadas pelo
vírus.
Enquanto escreve esta
crônica, que talvez ainda tenha um leitor resistindo bravamente às elucubrações,
o escriba vê o sol começar a brilhar entre as nuvens. Como é pessimista, não vê
nenhuma relação com a esperança de que as coisas vão mudar. O sol brilha e é só
isso mesmo.
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