Escrevo sobre os "Contos reunidos", de José J. Veiga, no Caderno de Sábado do Correio do Povo

 


Contos de relativa grandeza

por Cassionei Niches Petry

 

Eu sou chato quando leio o que os editores denominam de “contos reunidos” ou “contos completos”. Falta um conto nessa obra de José J. Veiga, que a Companhia das Letras está lançando, até três, se considerarmos as narrativas do livro De jogos e festas. Como o próprio autor as chama de novelas, inclusive “Quando a terra era redonda”, com 10 páginas, ignoremos esse detalhe. O positivo dessa edição que chega às mãos do leitor é que podemos ler contos que José J. Veiga publicou em diversos meios e deixou de fora de suas três coletâneas, formando praticamente um novo livro, chamado de “Contos esparsos”.

O livro abre com a obra que, de cara, catapultou o nome de José J. Veiga como um dos grandes escritores da literatura brasileira. Em Os cavalinhos de Platiplanto, de 1959, os contos, em sua maioria, têm crianças como protagonistas e narradores. A visão infantil ou adolescente aproxima os leitores mais jovens da obra, porém os temas são árduos, pesados. A literatura de José J. Veiga é para incomodar. As melhores literaturas incomodam.

No conto que abre o livro, “A ilha dos gatos pingados”, por exemplo, que conheci na escola através da clássica coleção Para gostar de ler, a crueldade do adulto com seu cunhado, o jovem Cedil, faz este fugir de casa, indo para uma ilha abandonada de um rio. Uma história nada infantil, que hoje seria rechaçada pelo pais supostamente mais ciosos da educação de seus filhos. “A usina atrás do morro” também tem olhar do jovem que começa a conhecer o mundo e seus habitantes cujo caráter é sempre duvidoso. A chegada de algo novo na pequena cidade traz a discussão sobre o progresso e suas consequências nem sempre benéficas. Pela primeira vez aparece a questão do “quem são eles?”, que nos remete a Julio Cortázar e seu conto “A casa tomada”, e que permeará toda a obra do escritor goiano.

O conto que dá título ao primeiro livro de José J. Veiga talvez seja o mais infantil. O mundo onírico atravessa o mundo real da criança, que não consegue diferenciar um do outro. É uma narrativa que erroneamente rotulam como realismo mágico, mas é bem claro que a fantasia da história é apenas um sonho do protagonista. Os elementos fantasiosos disfarçados através de sonhos de crianças também são observados em “A invernada do sossego”, em que o menino revê seu cavalo que havia morrido.

Já em “Era só brincadeira”, o narrador é adulto, porém sua visão sobre a realidade é infantil, ingênua, não vendo maldade nas coisas, acreditando ser tudo apenas uma peça pregada no seu amigo pelas autoridades. Outro conto, “Os do outro lado”, nos remete a nossa própria infância, afinal quem não lembra daquela casa diferente das demais, estranha, cujos habitantes eram um mistério para a vizinhança?

O ponto de vista infantil ou adolescente é a tônica também em A estranha máquina extraviada, de 1967, assim como as questões políticas revivem devido ao país ter recém-entrado numa ditadura militar. A perspectiva das narrativas é alegórica, recurso desenvolvido nos romances breves que o consagraram, como A hora dos ruminantes e Sombras de reis barbudos. Quem deixou a máquina na pequena cidade? Por que as pessoas a aceitaram passivamente, inclusive limpando-a e a transformando num ponto de encontro? Por que aceitamos passivamente e nos encantamos com os absurdos que nos são impostos goela abaixo? Os contos de José J. Veiga foram rotulados por alguns críticos como realismo mágico, mas se a realidade brasileira era (e é) surreal, não estaríamos diante de contos realistas? 

Meu conto preferido desse livro é “Diálogo da relativa grandeza”, em que dois irmãos discutem sobre o que é grande ou pequeno no mundo. Tudo depende do ponto de vista: “– Está vendo como você não sabe nada? Isso não é monte de lenha. É um monte de pauzinhos menores do que pau de fósforo”. Também relativo é o tamanho do bicho que aparece do nada assustando todo mundo em uma estrada recém-inaugurada, tudo dependendo da imaginação do povo. Trata-se do conto “O galo impertinente”: “as descrições feitas pelos viajantes emocionados iam de pinto a jumento”. Mais um ser que estranho que fere a tranquilidade de um lugar.

O próximo livro reunido no volume só apareceu 30 anos depois do anterior, em 1997. Objetos turbulentos se afasta um pouco mais do fantástico, salvo um ou outro conto, como “Espelho”. Aqui a unidade se dá, como sugere o título, nos problemas que os objetos ou outros utensílios do dia a dia podem trazer aos personagens: o cachimbo que dá certo status mas também pode causar inveja, o caderno de endereços que provoca um equívoco de proporções inimagináveis, um manuscrito perdido num táxi (possivelmente inspirado num episódio que aconteceu com o amigo Murilo  Rubião), o cinzeiro que é, literalmente explosivo (no conto mais fraco do livro, devido aos equívocos históricos cometidos pelo autor, que se arriscou a datar seu relato). São bons contos, mas sem o mesmo brilhantismo dos anos 60 e 70.

Aliás, a última parte, “Contos esparsos”, vai retomar alguns textos antigos de José J. Veiga, publicados em jornais, revistas e antologias, entre 1941 e 1989. Não há nenhuma explicação sobre não terem sido reunidos antes em algum livro ou por que ficaram de fora dos publicados, salvo um, “Cai Umahla, sobe Umahla”, que é um capítulo do romance Os pecados da tribo. Para os fãs do escritor, é um belo presente poder ler alguns esquecidos e bons contos, como “Uma simples formalidade” e “Reversão”, este escrito logo depois do segundo livro. Como curiosidade, podemos ler o que provavelmente foi o primeiro conto do autor, o fraquinho “As plumas”, que já tem uma criança como protagonista, e também uma crônica escrita para o Jornal do Brasil, em 1989, por ocasião da eleição presidencial, em que o então candidato Lula é retratado a partir de um diálogo de uma família.

Invejo o leitor que vai ler pela primeira vez José J. Veiga através desses Contos reunidos. A sensação será, garanto, parecida com a de seus personagens, a do espanto, do estranhamento com o diferente. Nesse caso, é positivo nos entregarmos e não questionarmos o mundo ficcional do escritor. Como escreveu o crítico Silviano Santigo, “é preciso que o leitor aprenda a adentrar-se pelo mundo do faz de conta – da escrita ficcional, da esperança e do sonho”.

(Cassionei Niches Petry é autor do romance Relatos póstumos de um suicida, Editora Bestiário.)

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