Loucos? Todos somos um pouco
Durante a leitura
de O alienista, parece que
a todo o momento o dedo acusador do protagonista aponta para o leitor
como se dissesse: “você é o louco; é você que quero prender nessa casa”. Esse
longo conto, na verdade uma novela, está ao lado de outras “pequenas grandes”
obras da literatura universal, como A metamorfose, de
Kafka; A morte de Ivan Ilich, de Tolstói; A volta do
parafuso, de Henry James; Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de
Stevenson e Bartleby,o escrivão, de Melville. Machado de
Assis, nosso maior escritor, nos prende na sua narrativa e deixa uma dúvida:
somos todos loucos?
Publicado
primeiramente na coletânea Papéis avulsos, de 1882, O alienista teve recentemente uma edição
primorosa pela Antofágica, com ilustrações de Portinari. Conta a história de
Simão Bacamarte, médico psiquiatra que ergue, na pequena cidade de Itaguaí do
século XIX, um hospício que recebe o nome de Casa Verde, com intuito de estudar
as causas e sintomas dos problemas mentais. Recolhe uma e outra pessoa, até que
quase toda a população acaba sendo internada: “A loucura, objeto dos meus
estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar
que é um continente”, diz o médico. Sua atitude provoca uma rebelião na antes
pacata cidade, levando ao poder o barbeiro que lidera os rebeldes, sendo logo
depois destituído pelos militares. Ciência, poder e religião são discutidos
durante toda a narrativa, mostrando que a razão pode sucumbir quando se quer
impor uma verdade. Qualquer semelhança com os dias que em vivemos não é mera
coincidência.
Mesmo antes dos
estudos psicanalíticos de Freud, Machado de Assis fez questão de colocar uma
casa como centro do enredo, pois ela é um dos símbolos do nosso inconsciente.
Especificamente, representa nossa proteção e suas dependências simbolizam os
desvãos de nossa mente. Poder-se-ia dizer que se jogavam os loucos dentro de um
hospício para proteger a sociedade. Mas em O alienista é
diferente: na verdade é o louco que deve ser protegido de uma sociedade mais
louca ainda. Como afirmou certa vez o cineasta japonês Akira Kurosawa: “Num mundo
louco, apenas os loucos possuem sanidade”.
Se pensarmos em
diferentes sinônimos para a palavra louco, veremos que todos temos um pouco
dessa “doença”. Lunático, por exemplo, seria aquele que vive no mundo da lua.
Alienado é o que é desligado das coisas, como se vivesse num outro mundo, ou
seja, um alienígena. Alucinado é o que vive fascinado com as coisas ao seu
redor, vive sempre delirando, imaginando coisas, ou ainda o que perde a razão
por amor. Insensato é o que perde o bom senso, como muitas pessoas atrás do
volante de um carro. Desmiolado é o desprovido de cérebro (lembram dos filmes
de mortos-vivos?), como algumas pessoas que assistem a determinados programas
televisivos ou escutam determinados tipos de música. Anormal é aquele que foge
do normal, como um professor que resolve declamar uma poesia em altos brados
dentro de uma sala de aula (eu, por exemplo, sou chamado de louco por causa
disso).
Poderia citar uma
porção de significados nos quais cada um de nós se encaixa. Talvez por isso extinguiram
os manicômios espalhados pelo país, pois de louco todos temos um pouco. Em
outras palavras, o normal é ser anormal. Moacyr Scliar chegou a escrever uma
releitura da obra, chamada O mistério da Casa Verde (Editora
Ática), que desperta o leitor jovem para ler o clássico no original. Em
determinada passagem, um personagem que diz ser Simão Bacamarte afirma: “...o
lugar de loucos, como vós, é lá fora. O mundo é um hospício, o vosso hospício”.
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