Uma criança feliz (Uma crônica anacrônica, do mesmo autor de um conto-resenha anacrônico)

 


Frederico Assmann gostava de folhear o álbum de fotografias quando visitava sua mãe. Fotos são janelas para o passado e ele não esquecia o passado. E o que esquecia, lembrava através das fotos, cenas da infância que inspiraram crônicas, contos e passagens dos romances que escreveu. Nas minhas pesquisas para o livro que vou publicar sobre sua vida e sua obra, os álbuns ajudam a entender o homem e também o escritor que meu velho mestre se tornou.

Um bebê rodeado por seus pais, em uma poltrona sobre o chão de terra batida, no porão de um CTG onde moravam, mostrando que os primeiros anos de vida foram duros. Talvez venha daí o fascínio do escritor por porões, que aparecem em sua quase desconhecida obra com alguma simbologia que não cabe ser destrinchada nesta crônica. Algo que ele nunca quis explorar foi a pobreza em que viveu. Viu muitos escritores serem incensados porque souberam usar as origens em proveito próprio. Assmann queria ser reconhecido pela sua literatura, não porque morou em um porão povoado de aranhas e depois em casas de madeira cheias de cupim e frestas nas paredes, de favor no terreno do avô materno e depois no morro, nos fundos da casa da sogra.

O mestre disse em uma entrevista que foi um músico frustrado. Nas fotos de infância, aparece ora com um pequeno violão ora com uma gaita. Eram seus brinquedos favoritos, mais do que os carrinhos ou bonequinhos de super-heróis, em que pese estes últimos inspirarem um conto comovente do seu terceiro livro. Nos seus arquivos, estão alguns cadernos em que Fred escrevia letras de música quando era criança, inclusive publicou uma crônica sobre o assunto. Frederico Assmann quis ser muitas coisas quando crescesse, até um astro de música pop, como Lulu Santos, mas as ondas do mar o levaram para outro caminho. Nunca aprendeu a tocar nenhum instrumento.

O professor não conheceu o mar quando era criança, seus pais nunca o levaram, talvez pelas condições financeiras. Nas férias ou finais da semana, o destino era ou a pequena chácara dos avós paternos ou a de um tio. Em duas das fotos que encontrei nos álbuns, Fred está montado num cavalo. Na primeira, está sendo ajudado pelo tio a montar o animal, que aparece não estar gostando muito da ideia. No verso, o mestre escreveu, anos depois, “cavalo encilhado só passa uma vez”. Mencionei essa foto e a frase em um texto que escrevi recentemente. Na segunda, ele aparece sozinho, sorrindo, algo não muito comum em suas fotos.

Embora sorrisse pouco, Frederico Assmann foi uma criança feliz. Ele me dizia que sorria por dentro. Tinha muitos sonhos, idealizou uma vida que nunca teve, culpa, segundo ele, de professores que profetizavam um futuro promissor para o pequeno gênio que aprendeu a ler sozinho. Criou na sua cabeça muitas expectativas e por isso se frustrou muito. Quando caiu na realidade, deixou as utopias de lado e passou a ter uma visão mais cética sobre a vida e o ser humano, tornou-se um sujeito mais feliz, embora sendo sempre um razinza e mal-humorado. Apesar de se considerar um fracasso em tudo o que fez, não morreu frustrado.

Sua mãe não tirou fotos do mestre segurando livros ou gibis. Descuido materno? Há apenas uma em que ele segura o que parece ser um calendário, no entanto apenas passa os olhos sobre a folha, pois não sabia ainda ler na época em que a fotografia foi tirada. Pode-se questionar, portanto, se ele foi realmente uma criança que lia muito. Frederico Assmann mentiu muito sobre sua vida. Aliás, sua vida é uma ficção contada por um idiota, com pouco som e pouca fúria, e significando nada.

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