A distopia está ali na esquina

 


 

Ignácio de Loyola Brandão é daqueles escritores que me formaram como leitor (no início, pela clássica coleção “Para gostar de ler”) e me influenciou na tentativa de estabelecer uma carreira de escritor (a partir de suas entrevistas e textos sobre o processo de criação de contos e pela temática do fantástico). E é dos grandes que ainda está na ativa e em boa forma. Seu mais recente romance lhe rendeu merecidos prêmios e ele já anuncia um novo para o ano que vem.

Com o quilométrico título inspirado em versos de Bertold Brecht, Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (Global Editora, 2018), Brandão retrata um Brasil atual, mas numa perspectiva de um futuro nada promissor. O escritor imagina nosso país daqui a algumas décadas (ora parecendo próximas, ora bem distantes) governado por presidentes diferentes praticamente todos os meses (um deles, sem cérebro), sendo que não dá nem tempo para a população guardar seus nomes, tudo no intuito de atender a milhares de partidos políticos, mais precisamente 1080. As pessoas são vigiadas por câmeras e microfones instalados em todos lugares, inclusive dentro de suas casas,  são obrigadas a usar tornozeleiras eletrônicas desde o nascimento, podem desfrutar do direito de eutanásia na velhice (afinal, os idosos são um empecilho para o Estado), morrem aos milhares, acometidas por pestes diversas (o romance foi publicado pouco antes do reinado do novo coronavírus) e os corpos são transportados em comboios de caminhões que provocam um fedor insuportável por onde passam, além de trancar o trânsito devido a sua extensão: “A caravana leva os mortos por dengue, zika, H1N1, chikungunya, varíola, obesidade mórbida, malária, febre amarela”. 

Neste país caótico, vivem Clara e Felipe, cujo relacionamento foi rompido logo no início da narrativa. Ela resolve, então, voltar para sua terra natal, uma cidade do interior, isolada, um paraíso para os ricos e inferno para os pobres, onde também se encontram todos os males que assolam o restante do país. Ele, por sua vez, deixando o emprego (“Antes eu tinha ocupação, rotina diária, como se diz, horário de entrada, de almoço, de saída. Cumpria obrigações. Um babacão. Respeitável, como queria meu pai.”), decide seguir sem rumo, embarcando em vários ônibus que o levam a qualquer lugar, porém o acaso lhe destina um caminho. O que representam esses indivíduos? Brasileiros que antes viviam das supostas benesses do capitalismo e que acabam perdendo tudo, não abrem mão de seu orgulho para assumirem seus erros e, assim, reatarem para viverem felizes. Seus sentimentos estão contaminados pelo ar contaminado, suas esperanças foram soterradas pelo lixo produzido pela população, seus corpos estão tão mortos quanto os corpos carregados pelos caminhões.

Segundo o próprio Ignácio de Loyola Brandão, o romance é uma distopia real: “foi uma sacação de tudo o que estava aí, é só elevar a potência máxima”, disse em entrevista para a Revista Cult. Os absurdos que lemos na obra pareceriam impossíveis de acontecer, não fosse a tragicomédia em que estamos atuando de figurantes e em que um bobo da corte está na direção e fazendo o papel de vilão.

Pensando bem, comparar nosso presidente com um bobo da corte é uma ofensa. Para o bobo.

(Também pode ser lido no meu site.)

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