Texto que fugiu do meu caderno de leituras

 

Um homem, que se pressupõe ser um escritor, tem uma obsessão: vingar-se, com requintes de crueldade, de um sujeito que abusou de sua filha. Ela, por seu turno, pede para ele não fazer isso, afinal poderia ser preso. Ela sai de casa, vai morar num albergue, com amigas que a ajudaram. O homem foi abandonado pela segunda vez, portanto, já que a esposa, depois de ele quase tê-la matado, sufocando-a com o travesseiro, o deixara cuidando sozinho da menina. Depois de ficar durante semanas no seu apartamento, doente, não percebe que tudo desmorona ao seu redor, inclusive a cidade. Não há luz, não há água, não há telefone. Também não há mais polícia, mas sim sujeitos com balaclavas que agora dirigem as viaturas empunhando armas. E a segurança do seu lar está ameaçada. Na verdade, não há mais lar.

Assim inicia O riso dos ratos, romance do sempre surpreendente Joca Reiners Terron (Todavia, 208 páginas, disponível em e-book). Como este caderno de leituras é pessoal, obviamente não vou deixar de mencionar partes importantes do texto, recenando repassar os tão difamados spoilers. Sou o único do leitor, que voltará no futuro para relembrar o que li. Após ter sua casa invadida e ser expulso dela, não sabe exatamente por quem, o protagonista passa a reconhecer a nova realidade que o cerca. Depois de uma epidemia, a cidade, talvez o mundo, tem poucos sobreviventes, que comem carne de ratos e cães, vivem nas ruas, são submetidos a trabalhos forçados, tem um líder com título religioso, o bispo, na verdade um ditador que se masturba na frente dos outros e ejacula sobre os escravos, as senzalas voltam a existir, assim como o valongo, lugar onde se vende escravos, os navios negreiros, as correntes. A certa altura, nos damos conta de que o protagonista é negro, assim como as pessoas que o cercam e agora são escravos. O que o mantém vivo é a promessa de vingança, tentar encontrar o inimigo, assim como reencontrar a filha. Ele a vê em todas as mulheres que encontra, seres destruídos e objetos de desejo do bispo. São chamadas de “rachadas”, enquanto os homens são os “paus moles”. A cidade, antes uma selva de pedras, passa a ser literalmente um lugar selvagem.

O romance é aparentemente distópico, pois não estamos de livres de viver algo parecido. E se a epidemia atual fugisse de controle? Estaríamos aqui agora, lendo, escrevendo, gozando de liberdade, ainda que relativa? Foi a mesma reflexão que fiz ao ler Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, de Ignácio de Loyola Brandão. Minha visão trágica da existência não me permite ser otimista. Como reflete um personagem, “a vida era um vasto limbo entre o céu e o inferno, a coisa mais frágil deste mundo”. Estamos, porém, mais próximos do inferno.

(Romance lido entre 11 e 13/11/2021.)

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