Júlio Nogueira escreve sobre "A dama de branco", de Sérgio Sant'Anna

 


O testamento traído

 

Júlio Nogueira, autor da orelha do meu último romance, Relatos póstumos de um suicida, leu e se decepcionou com a obra póstuma de Sérgio Sant’anna. Escreveu suas impressões e as enviou para o meu e-mail com o intuito de publicá-las no meu blog, já que eu não quis ler o livro, com medo de me decepcionar, assim como não li essa crítica, para não confirmar meus receios. O texto a seguir, portanto, não reflete a opinião do blog.

Sérgio Sant’anna, morto no ano passado, vítima do vírus que ainda está circulando por aí, deixou alguns contos prontos para serem publicados em livro e outros necessitando de revisões e de um bom preparador de textos. Seria seu testamento literário, até porque a morte estava cada vez mais presente na sua obra, embora sempre estivesse. A expressão que me veio à mente, porém, foi “testamento traído”, que nos remete a um livro de ensaios de Milan Kundera, escritor no qual vejo muitas semelhanças com Sant’anna no tratamento de alguns temas, notadamente o erotismo e a intertextualidade.

Acontece que algumas narrativas de A dama de branco (Companhia das Letras, 188 páginas), principalmente a novela “Carta marcada”, jamais poderiam ter vindo a público, pois não estavam prontas e não refletem a qualidade literária do autor. O próprio organizador, Gustavo Pacheco, amigo do Sérgio, apontou que essa novela havia sido terminada, porém não foi nem mesmo relida pelo autor, estava “ainda sujeita a revisões”. Há um enorme furo ao começar o enredo nos anos 60, com todas as referências à ditadura e, na metade, com os personagens praticamente da mesma idade, nos deparamos com celulares, Uber, zap, etc. Se foi proposital, para dar a entender que vivemos em período de exceção, mesmo assim não foi bem feito, pois faltam elementos para convencer o leitor. Quem ler, verá. Além disso, não dá para acreditar que os personagens sempre com a sexualidade no ápice, de ideias avançadas e linguagem desbocada, típicas do autor, vão dizer, antes de uma trepada, “Agora vem, não percamos tempo, amor” ou “vestir-me a camisinha”. Cenas forçadas, como a da juíza lésbica que, no seu gabinete, oferece um boquete ao advogado como “um modo de render-me à sua atuação tão sensível no julgamento e recompensá-lo por isso”, não fazem jus à arte de Sérgio Sant’anna. Numa releitura, ele corrigiria isso. Foi penoso terminar o livro devido a essa narrativa.

A coletânea seria quase perfeita se acabasse na página 102, no ponto final do conto que intitula a obra, o último texto publicado em vida pelo autor, numa revista, isso se não contarmos as suas contundentes postagens nas redes sociais, que volta e meia o Cassionei, seu “amigo” no Facebook, me enviava por e-mail. Em “A dama de branco” o narrador se sente atraído durante a madrugada por uma mulher que caminha no estacionamento de seu edifício. Observa-a da sacada do apartamento (“Embora pequenas, as sacadas são uma abertura para o universo”), durante o isolamento devido à pandemia e, por isso, imagina que ela possa ser a morte (“A morte não passa de uma obsessão minha”), como uma forma de imaginá-la próxima dele. Esse conto sim seria uma despedida perfeita entre o leitor e Sérgio Sant’Anna, ao som de Erik Satie, citado nesse em outros contos.

Nas outras narrativas (expressão preferida de Sérgio Sant’anna para denominar suas histórias), destacam-se as que refletem sobre o fazer artístico, dialogam com pinturas (“Nu descendo uma escada”, de Marcel Duchamp, é citado em algumas narrativas, assim como em outros livros do autor), tratam do espinhoso tema do suicídio (“foi uma imensa surpresa para mim encontrá-la morta, ao lado daquele bilhete: ‘Desculpe o mal jeito’. Não perdera seu senso de humor, mesmo num bilhete de suicida, conciso, como costuma ser esse gênero de bilhete, segundo dizem os entendidos”) ou os que se articulam num formato de poesia em prosa, calcada na repetição (“A noite da escrita febril. A noite da escrita abortada. A noite desesperada”). Todo o Sérgio Sant’Anna está na obra, com suas qualidades e defeitos. Mas a última narrativa, ah, essa foi uma traição dos editores.

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