Crônica de uma literatura assassinada
Crônica de uma literatura assassinada
Eu confesso: sou um assassino. Não premeditei esse crime, muito menos tentei justificá-lo com desculpas esfarrapadas tal qual Raskólnikov. Mas cometi, ou melhor, estou cometendo-o de forma consciente. Nenhum advogado, acredito, pegaria meu caso, afinal me declaro de antemão culpado. Sim, sou um dos responsáveis pela morte lenta e quase inevitável da literatura.
A paixão pela palavra escrita foi o que me levou a gostar da arte literária. Aliás, devo isso aos políticos, pois foi assistindo às propagandas eleitorais da campanha de 86 que aprendi a ler, juntando as letras dos nomes dos candidatos (e ficava bravo, já que, decifrando lentamente, não dava tempo para saber o cargo a que cada um concorria). Os escritos nas embalagens das balas, as quais adoçavam o chimarrão da família, também serviram. Porém, foram os gibis dos meus tios, depois os livros da estante dos meus avós (enciclopédias e dicionários) e mais adiante os da biblioteca da minha escola o passaporte para a viagem (analogia velha esta, hein?) a um mundo de fantasia que a literatura proporciona.
“Sempre imaginei o paraíso como uma grande biblioteca”, escreveu o escritor argentino Jorge Luis Borges. Era como eu me sentia na pequena sala de livros do colégio Luiz Dourado, para onde a professora Maria Geci me mandava quando eu terminava as atividades e ficava debochando dos “atrasados” (“tirminei, tirminei, tirminei”, eu cantava). Foi lá que conheci Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ana Maria Machado e, bem mais tarde, Fernando Sabino, Marcos Rey, As viagens de Gulliver e A ilha do tesouro. À minha primeira professora, portanto, devo a paixão pelos livros.
Por isso, decidi ser professor, para poder passar aos alunos a mesma emoção que sinto ao abrir um livro, semear novos leitores, mudar o mundo, enfim. No entanto, todos os sonhos escorrem pelas mãos quando o professor vê pela frente o conteúdo programático que deve ser seguido.
No 1º ano do Ensino Médio, por exemplo, é uma tortura, mesmo para os amantes da arte literária, ler as cantigas de amigo do Trovadorismo ou a Carta de Pero Vaz de Caminha. No 2º ano, José de Alencar é de doer, salvo um ou outro romance. No 3º ano, Os sertões, que é uma grande obra, cansa o aluno com sua linguagem rebuscada. São só alguns exemplos de obras as quais possuem qualidades, sem dúvida, mas cuja linguagem é diferente da linguagem vivenciada pelos jovens. Obrigá-los a ler, porque o vestibular pede ou porque a escola serve para ensinar o que o aluno não conhece, é afastá-los do prazer do texto. Esse prazer que é uma descoberta que acontece aos poucos, quando se descobre um autor, depois outro, que nos remete a outro, e assim por diante.
Como professor, tento seguir o que é estabelecido, cumpro ordens, sigo os conteúdos propostos. Por isso me sinto um assassino. E o pior, assassino daquilo que amo.
Comentários
e sei que não vou conseguir ser outra coisa na minha "vida feliz" além de ser professora
mas é pelos fatos por ti citados e por saber que também teria de dar aulas de português que decidi por não fazer letras
vou tentar ser professora de teatro
também envolve muita literauta e é outra coisa que amo
mas ainda me sinto um pouco egoísta por isso...
tri desabafando... xD
Valeu. Keeponrockin
Estava intediante, queria eu buscar algo mais interessante, então comecei a ler Paulo Coelho. Meu Deus! Essa foi a pior "loucura literária que fiz até hoje.
Parti em busca de "caminhos" mais longos, buscando livros de "verdade".
Quando li pela primeira vez José de Alencar, senti-me um retardado, porque naquela ocasião, era impossível compreender o livro; fiz, o que pra mim até então, era improvável: levar o dicionário junto com o livro.
Foi "doloroso" ler sem entender, porém, adquirindo novos vocabularios, fez-me sentir seguro. Depois vieram outros e outros. Fui me familiarizando com as obras extremamente complexas dos autores do século XIX.
Hoje, graças a essa "ditadura literária", não engulo qualquer livro.
Graças a eles, tenho dois objetivos: ser um escritor reconhecidos, e me formar em Letras e Literatura.
Assassinada ou não, amo a Literatura, por mais que tentem matá-la...
Abraços!