Os rios de Heráclito, Saramago e Borges no Traçando Livros de hoje
Não moro perto de nenhum rio. Próximo a minha casa há
somente um arroio onde na minha infância tomava banho. Hoje mergulho apenas na
minha biblioteca, que ainda não é rio. É dela que pesco meu alimento diário.
Sobrevivo dos seus peixes, grandes e pequenos. Geralmente eles têm espinhas que
trancam na garganta. São os mais apetitosos.
“Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo.” Pesco esta
frase em um livro da coleção Os
pensadores, no volume dedicado aos filósofos pré-socráticos. Este famoso
fragmento de Heráclito de Éfeso aparece também desta forma: “Nos mesmos rios
entramos e não entramos, somos e não somos.” A ideia é de que mudamos, não
somos a mesma pessoa depois que os anos passam. O Cassionei que antes se
banhava no arroio perto de sua casa não é mais o mesmo Cassionei de hoje, muito
menos as águas do arroio, que agora estão muito poluídas.
Fui levado ao rio de Heráclito depois de reler com meus
alunos a crônica “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, de José Saramago,
do livro Deste mundo e do outro. Nela,
o Nobel de Literatura reflete sobre a passagem do tempo; “Desço até a água,
mergulho nela as mãos, e não as reconheço. Vêm-me na memória outras mãos mergulhadas noutro rio. As minhas mãos de há trinta anos, o rio antigo de águas que
já se perderam no mar.”
Esse rio da literatura e da filosofia me leva agora a um
argentino. Pesco nas minhas estantes um livro de Jorge Luís Borges, Elogio da sombra. Há um poema cujo
título é “Heráclito”. Leio:
“Que rio é
este cuja fonte é inconcebível?
Que rio é
este
que arrasta
mitologias e espadas?
É inútil que
durma.
Corre no
sono, no deserto, num porão.
O rio me
arrebata e sou esse rio.”
Em outros versos de
outros livros, Borges também menciona a alegoria do filósofo, como no poema
“São os rios”, de Os conjurados:
“Somos o tempo. Somos a
famosa
parábola de Heráclito,
o obscuro.
Somos a água, não o
diamante duro,
a que se perde, não a
que repousa.
Somos o rio e somos
aquele grego
que se olha no rio
(...).”
No
poema “Arte poética”, em O fazedor, escreve:
“Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.”
É,
porém, este trecho da conferência “A poesia”, publicado no livro Sete noites, que me arrebata:
“Emerson disse que uma biblioteca é um gabinete
mágico em que há muitos espíritos enfeitiçados. Despertam quando os chamamos;
enquanto não abrimos um livro, esse livro, literalmente, geometricamente, é um
volume, uma coisa entre coisas. Quando o abrimos, quando o livro dá com seu
leitor, ocorre o fato estético. E, cabe acrescentar, até para o mesmo leitor o
mesmo livro muda, já que mudamos, já que somos (para voltar a minha citação
predileta) o rio de Heráclito, que disse que o homem de ontem não é o homem de
hoje e o homem de hoje não será o de amanhã.
Mudamos incessantemente e é possível afirmar
que cada leitura de um livro, que cada releitura, cada recordação dessa
releitura renovam o texto. Também o texto é o mutável rio de Heráclito.”
Sinto-me assim. Há livros na minha biblioteca que, quando os
releio, não me dizem mais nada. Outros ganham novos significados, pois eu
mudei, envelheci, adquiri novos conhecimentos. Alguns poderiam ser vendidos aos
sebos, pois só ocupam espaço, não têm espinhas que atravessam a garganta.
Outros ainda continuam no meu cardápio. O tempo passa, tudo passa. Os livros
também passam como rios na minha vida. E de rio em rio busco o mar.
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