Maria Kodama aprovaria?
Conheci a poesia de Escobar
Nogueira, num primeiro momento, na sua versão oral. Antes de ler algum
livro do autor, assisti a um de seus recitais numa livraria e cafeteria durante
a feira do livro da minha cidade. Escobar domina o microfone como poucos. Não é
à toa que é chamado para muitas palestras Brasil afora e é um grande professor
de cursinhos de pré-vestibular. A leitura da versão escrita de seus poemas, em
livros como Milongol e Pejuçara, apenas confirmaram a qualidade
do que ouvi.
Sua publicação mais recente é Borges vai ao cinema com Maria
Kodama (Chiado Editora, 72 páginas). O título nos remete à oralidade da
obra, tendo em vista que Jorge Luis Borges, durante a metade final de sua vida,
ditava seus poemas devido à cegueira avançada. Secretária particular, depois
esposa e agora detentora dos direitos autorais do marido, Maria Kodama (que se
souber desta coletânea, pode querer censurar a publicação) também transcrevia
para o escritor argentino os filmes a que iam assistir: “Ela vai ver/Ele vai
ouvir/o novo filme de Ingmar Bergman”, diz os versos do poema que dá título à
coletânea. Ela, porém, se depara com a dificuldade de fazer com que Borges
“veja” um filme cheio de cores e silêncios como Gritos e sussurros: “Mas Kodama está muda./Não vê como traduzir/o
vermelho gritante do cenário,/o branco sussurrante do figurino.”
Na culinária poética de Escobar Nogueira, há uma porção de
ingredientes misturados, sendo que a intertextualidade dá o tempero principal.
O melhor poema da coletânea, pelo menos para este resenhista, tem uma pitada
forte de Manuel Bandeira ao tratar da indiferença que temos em relação a quem
chafurda no lixo para comer: “um homem comendo o lixo./ E eu não disse: ‘Meu
Deus!’./E não pensei que fosse um bicho.//Os seres mudaram./E o pior, Manuel, é
que acostumamos com isso”. No poema “Bossa”, o eu lírico afirma que escreveu um
romance em que gostaria de se vingar da mulher com quem terminara o
relacionamento. Como o narrador de Memórias
póstumas de Brás Cubas, “Minha ideia era te encher a cara de bexigas/e te
deixar coxa de uma perna.” Em “Divina tragédia”, o eu lírico se lembra de um
episódio do poema de Dante Alighieri, em que o casal Francesca e Paolo está no
inferno, “no círculo dos luxuriosos,/onde um vendaval incessante arrasta os
amantes/que gemem numa completa escuridão”. E completa: “Será assim o lugar para
onde iremos, meu amor?”
Escobar ainda dialoga com a novela de televisão, com a música,
com a pintura, a fotografia. Neste diálogo incessante com diversas formas de
arte, o escritor reafirma seu lugar como artista, em poemas para se ler, ver e
ouvir. Acho que Maria Kodama vai aprovar esta homenagem a Borges.
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