As fronteiras do indivíduo



Vivemos entre fronteiras, desde os muros e cercas de nossas casas até as demarcações que dividem os países. Os animais também marcam seu território. O problema está no momento em que as fronteiras não apenas delimitam, mas também nos limitam. Ou pior, quando nos separam. Pior ainda, com violência. É disso que trata o romance de João Batista Melo, Malditas fronteiras (Editora Benvirá, 280 páginas).

Por sorte a internet rompe barreiras (apesar de poder também aumentá-las) e nos proporciona a proximidade de escritores que admiramos. A obra contística do escritor mineiro, autor do espetacular O inventor de estrelas, teve para mim influência fundamental. Basta dizer que a utilização de epígrafes para abrir cada um dos contos do meu primeiro livro, Arranhões e outras feridas, foi inspirada pelos livros desse escritor. Escrevi sobre seus contos e, depois de publicar o texto em meu blog, passamos eu e o mestre a interagir nas redes sociais. Para meu orgulho, começou a elogiar meus textos e, por fim, me enviou seu último livro, com uma dedicatória em que declara ser meu leitor. Não esperem, portanto, uma abordagem fria e objetiva, como já fiz, por exemplo, com dois escritores que admiro, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, além do mais porque o enredo me pegou pelo lado emocional mesmo.

A obra se passa numa Belo Horizonte do final dos anos 30 e início dos 40, com alguns pulos na Alemanha e em Blumenau. Gira em torno de cinco personagens que têm alguma relação de amizade, mas que também têm em comum o fato de serem afetados pelo nazismo que começava a estender sua teia. O protagonista é o garoto Valentino, filho de um comerciante xenófobo, que via os imigrantes alemães como um dos fatores para o atraso do país. Pois justamente seus melhores amigos eram alemães: Sophie, menina cega com quem brincava; o avô dela, Konrad, um mestre cervejeiro; e Erika, escritora que fugira há pouco tempo da Alemanha, depois de os nazistas terem matado seu marido judeu. O quinto personagem é o padre Wolfgang, amigo de Konrad, com quem trava brilhantes diálogos. 

O narrador em terceira pessoa vai alternando o foco para cada um dos personagens. Um por um os tijolos dos muros que vão sendo erguidos em torno de cada um deles tornam a história mais angustiante. É triste, por exemplo, a descrição dos livros sendo queimados pelos nazistas na principal praça de Berlim, enquanto Erika observava tudo sem poder fazer nada: “Um oceano de papel impresso. Castelos de livros. Florestas de livros. Cordilheira de livros. Avalanches de capas e miolos escorrendo do alto a cada vez que uma remessa caía com violência sobre a interminável elevação. [...] Erika descobriu como chorar sem lágrimas e em silêncio. [...] Ideias carbonizadas. Sentimentos em cinza.” Igualmente tocante é a amizade das duas crianças, proibidas de se verem pelo pai do menino. Triste é a intolerância em relação aos alemães, considerados culpados pelos brasileiros devido às atrocidades que Hitler vinha cometendo na Europa. Intolerância que resulta numa das partes mais tocantes do romance, que não revelarei para que o leitor sinta as mesmas sensações que senti. 

A partir das histórias sobre cerveja e seu preparo (“E para um alemão o mais importante é o sabor. Muito gelo afasta o gosto original.”), reflexões sobre a escrita (“Uma teia de aranha agarra as palavras assim que as coloco no papel. Elas se embolam na primeira linha e não consigo sair do lugar.”), o crescimento da especulação imobiliária das grandes capitais e as dificuldades dos alemães e seus descendentes de conviverem com a raiva do brasileiro, sendo inclusive proibidos de falar sua própria língua, somos levados até o limite entre a razão e a emoção. Aliás, João Batista Melo soube equilibrar muito bem essas fronteiras, coisa que eu, como leitor, não consegui.

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