Memórias de um descendente de Brás Cubas
“Enredo é coisa de criança”, diz o narrador e protagonista
do romance O azul do filho morto (Editora
34), de Marcelo Mirisola (O livro
está indisponível no site da editora. Que tal ressuscitá-lo?). Eu escrevi
narrador e protagonista? É uma contradição do escrevinhador deste texto, que
não pode ser chamado de resenha, muito menos de crítica. Aliás, o título deste
texto é contraditório. Também não dá para chamar o livro do Mirisola de
romance, afinal não segue as características do gênero justamente por não ter
enredo. Então, não há narrador, tampouco personagens, por conseguinte não há
protagonista. Os espaços e o tempo vertiginosos da história (?) também não
seguem nenhuma regra. O que seria, então? Confissões, memórias, posts de um
blog? Ou MM criou um novo gênero literário que poderíamos chamar de “vômito”, “cagada”
ou “esporreada”.
Danem-se rótulos e novos rótulos, ainda mais porque Azul do filho morto foi publicado em
2002, no início da era PT, que, parece, já acabou. E Mirisola não teve nenhum
seguidor de seu estilo, único, por sinal, na literatura brasileira, assim como
sua persona literária e social é singular. E não há como dissociar o escritor
dos seus narradores (ou vomitadores ou cagadores ou esporreadores), chamados às
vezes de MM. Parece que nem ele faz questão de dissociar. Não sabemos, porém,
se o escritor Marcelo Mirisola é personagem da pessoa física Marcelo Mirisola,
e se o enredo que está criando é justamente sua vida.
Não vou mencionar o briguento Marcelo Mirisola, que talvez
vá brigar comigo por causa desta, vá lá, crítica literária. Isso muitos já o
fizeram e se tornou lugar-comum no meio literário brasileiro. Mirisola
conseguiu até brigar com o escritor da orelha de O azul do filho morto, Ricardo Lísias, que por sinal andou cortando
contato comigo nas redes sociais porque um personagem crítico literário que
criei criticou seu livro de contos, logo eu que elogiei na minha coluna do
jornal seu romance O céu dos suicidas.
Mas voltando (estou parecendo o protagonista (?) do Mirisola, que vai e vem em
suas digressões. Efeito MM.). Tentando resumir para o leitor deste blog a
narrativa (?), temos contada (?) a vida de um aspirante a escritor (“Antes de
qualquer meleca sempre fui um escritor.”), focada principalmente na infância e
adolescência. Um jovem que gostava de lamber azulejos do banheiro, enfiar calcinhas
sujas das empregadas no seu próprio cu, ser chupado por um débil mental,
punhetar um pastor alemão (o cachorro), chupar buceta e trepar putas de graça,
só para citar algumas das suas atividades comuns do dia a dia.
Desfilam aos olhos do leitor uma galeria de personagens, ou
uma folha de corrida de pessoas reais, inclusive nomeando celebridades que
inspiraram as bronhas do esporreador-escritor. Mirisola não mede as palavras
para vomitar em cima de todos e de si mesmo. Sobra até para os editores e outros
seres da fauna literária brasileira: “Em 1989, tive meu primeiro original
recusado: Um pouco de Mozart e genitálias.
Bem, azar de quem recusou. Para mim, os editores – com exceção do meu que está
sempre pagando uma merreca pr’eu escrever este livro – são todos uns chupadores
de pica, analfabetos, cegos por opção, degenerados, mercenários e débeis
mentais. Vale a mesma coisa pros jurados de concursos literários e pros poetas
em geral. Odeio poetas.” Ou seja, também sobrou pra mim, pois já fui jurado num
concurso em que o escritor não ganhou nada.
O filho morto do título remete este professor de literatura
e metido a escritor e crítico, que sou eu, ao também pseudo-romance Memórias póstumas de Brás Cubas, do
Machado de Assis, cujo narrador-protagonista é um ancestral mais comedido do
narrador-protagonista de Marcelo Mirisola (por coincidência, dois escritores que
têm a letra M em seus nomes). São dois vomitadores autocríticos que criticam a
sociedade em que chafurdam e que não transmitiram “a nenhuma criatura o legado
da nossa miséria”. Ambos, porém, também choraram, disfarçadamente quando as
mulheres com quem treparam perderam as crianças. E ambos são criações de dois
grandes escritores brasileiros.
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