No Traçando Livros de hoje "Prosas apátridas", de Julio Ramón Ribeyro
Na minha coluna no jornal Gazeta do Sul, escrevo sobre "Prosas apátridas", de Julio Ramón Ribeyro
Reflexões de um fumante inveterado
Apátridas porque não encontraram espaço em outros livros do
autor, perdidas em anotações errantes, ou porque não tinham classificação, não
se enquadravam em nenhum gênero, sendo tão somente prosa. Isso quem disse foi o
próprio Julio Ramón Ribeyro na nota
introdutória escrita em 1982. Lançado recentemente pela Editora Rocco na
coleção “Otra Língua”, o livro Prosas apátridas, do contista peruano, autor de Só
para fumantes, tem tradução de Gustavo Pacheco. Aforismos, páginas de
diários, fragmentos, não importa. Estamos diante de literatura da melhor
qualidade, reflexões sobre o fazer literário, sobre vida e morte (“Minha vida já
está gasta e estou vivendo somente a crédito.”), amizades e paixões como os
livros (lê-los ou apenas tê-los, quem sabe lê-los ou então escrevê-los) e os
cigarros (Ribeyro morreu em 1994 devido ao vício nos cilindros brancos), sua
vida em Paris.
Sãos justamente os aforismos que tratam de literatura os que
me interessam. O primeiro texto aborda a quantidade de livros que têm os
aficionados em suas bibliotecas, geralmente na proporção inversa do tempo para
ler (e às vezes a vontade acaba sendo pouca também). Pela quantidade de livros
lançados, se pergunta quais os que ficarão para a eternidade, quais os autores
que permanecerão: “Ao que parece, a glória literária é uma loteria, e a perenidade
artística um enigma.” Em um fragmento da segunda parte, ele volta ao tema: “A
biblioteca pessoal é um anacronismo. Ocupa muito espaço em casas cada vez
menores, é caro formá-las, nunca realmente se aproveita delas de modo proporcional
a seu custo ou volume.” E conclui: “há loucos que querem ter todos os livros do
mundo. Porque são muito preguiçosos para ir às bibliotecas públicas; porque
acham que basta olhar para as lombadas de uma coleção para pensar que já a
tenha lido; porque têm vocação de coveiro e gostam de estar rodeados de mortos;
porque nos atrai o objeto em si, além do seu conteúdo, cheirá-lo, acariciá-lo.”
Escreve Ribeyro também sobre a escrita: “O ato de escrever
nos permite apreender uma realidade que até o momento se nos apresentava de
forma incompleta, velada, fugitiva ou caótica.” Quando os escritores refletem
sobre sua escrita, nós, leitores, ganhamos muito com isso, ainda mais se também
escrevemos. Enquanto seu filho brinca no quarto e ele escreve no seu canto da
casa, o escritor questiona “se o ato de escrever não é uma prolongação das
brincadeiras da infância”. Concentrados, vivendo em um mundo imaginários, ambos
isolados, um brincando com soldadinhos, outro com palavras, constroem mundos
“com utensílios ou fragmentos do mundo real”. A diferença, porém, é que a
infância acaba e a literatura do adulto permanece, pois, em vez de objetos,
usamos signos, a representação. “Deixar a infância é precisamente trocar os
objetos por seus signos.”
Julio Ramón Ribeyro, mestre do conto, em alguns dos
fragmentos de Prosas apátridas escreve
narrativas curtas, talvez projetos de contos que não vingaram, como a história
de um trio de músicos, um pianista, um violinista e um violoncelista, que
entram em um bar de turistas e tocam “sem orgulho e sem interesse, nem sequer
como quem cumpre um dever, mas sim como se cumprissem uma penitência."
No fragmento 92, ao escrever que a informação passou a ser
mais fácil na virada da década de 70 para 80, com “livros de bolso, revistas de
divulgação, manuais ao alcance de todos”, que faziam parecer que se vivia um
novo Renascimento, Julio Ramón Ribeyro conclui dizendo que “a informação não
tem nenhum sentido se não está governada pela formação”. Essa é uma importante
reflexão que caberia muito melhor nos dias de hoje, em tempos de internet. Seu
livro é um convite a sair das redes sociais e pensar sobre a condição humana,
sobre o indivíduo frente a um mundo caótico.
Cassionei Niches Petry
é escritor e leitor como Julio Ramón Ribeyro, mas não fuma e nem bebe como ele,
tampouco tem a mesma qualidade. Além de escrever esta coluna, colabora com
sites na internet e mantém um blog, www.cassionei.blogspot.com.
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