No Traçando Livros de hoje, "O evangelista", de Manoel Herzog
Aos homens de boa vontade
Há muitas denominações para quem escreve. O escrivão, por
exemplo, elabora os autos e os processos de um cartório. O escriturário, por
sua vez, trabalha em registros de repartições públicas. O escrevente é o
subalterno dos outros dois. Há ainda o escriturador, palavra que não encontrei
no dicionário, mas se refere àquele responsável pela escrituração de um órgão
público ou privado. O escriba era, na antiguidade, o copista de manuscritos, no
entanto uso essa expressão quando me sinto um pouco envergonhado de me
denominar escritor. Poderia, quem sabe, me chamar de escrevinhador ou
escrevedor, aquele que escreve com não muita qualidade.
Já escritor serve como denominação geral para todas as
atividades que envolvem a escrita. Temos, por exemplo, o escritor fiscal, o
escritor de biografias, etc. É muito mais usada, porém, segundo o dicionário
Houaiss, para designar o autor de obras literárias, científicas, filosóficas,
etc. Sempre, porém, que vejo ou ouço a palavra, penso em literatura, em arte.
Em O evangelista, (Patuá Editora, 184
páginas), de Manoel Herzog, o protagonista escreve, mas não é um escritor, é um
escrivão. Começa, no entanto, premido pelas circunstâncias, a produzir poemas e
uma espécie de evangelho, uma “Boa Nova” ao contrário, da justiça no Brasil. É,
portanto, mesmo não se denominando dessa forma, um escritor. Nomear, aliás, é
uma tônica dessa história. Os nomes bíblicos das personagens colocam o leitor a
todo o momento a fazer referências intertextuais com o livro sagrado dos
cristãos.
João Evangelista, ou simplesmente Vange, é filho de Maria e
irmão de Salvador. Ambos têm um relacionamento amoroso com Madalena. Os dois
são, também, formados em advocacia e atuam num cartório, onde se envolvem em
falcatruas com uma banca de advogados e alguns juízes, entre eles um chamado
Pôncio, que “lava as mãos”, ignorando ameaças que Salvador vinha sofrendo de
bandidos. Este acaba sendo morto e volta como aparição, dando conselhos para
Vange. Não faltam, da mesma forma, um João Batista, um Pedro, um Lázaro, um Caio
Fábio (representando Caifás), um Heródoto (ou Herodes)...
A narrativa segue em idas e vindas na linha temporal, porém
perde o ritmo em determinado momento. Quase que abandono a leitura. Próximo do
final, entretanto, o enredo me desperta novo interesse, salvando o livro. De
qualquer forma, vale acompanhar o jogo intertextual, a linguagem deliciosa do
narrador e das demais personagens e, principalmente, a análise mordaz que
Herzog faz do sistema judiciário e de seus bastidores.
Manoel Herzog nasceu em Santos, em 1964. Também publicou o
romance Os bichos, pela editora Realejo, em 2012, e o poema
longo A comédia de Alicia Bloom, pela Patuá, em 2014, mesmo
ano em que conheci sua obra quando fui jurado do extinto Prêmio Portugal
Telecom, do qual ele foi semifinalista com o CBA - Companhia Brasileira
de Alquimia, publicado no ano anterior também pela Patuá. Um escritor a
quem se pode chamar de escritor realmente.
Cassionei Niches Petry é escriba, autor de um
livro de contos e de um romance que não mereceram destaque nos meios
literários. É escrevinhador desta coluna e colabora com sites na internet. Seu
blog pode ser acessado em www.cassionei.blogspot.com.
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