“São Bernardo”: seria Madalena uma nova Capitu?


A releitura de obras canônicas da literatura brasileira me permite ter um olhar diferente daquele rapaz que cursava a universidade dezessete anos atrás, antes guiado pelo ponto de vista dos professores e dos ensaios sobre os livros. São Bernardo (1934, atualmente na 98ª edição pela Record), de Graciliano Ramos, por exemplo, me parece agora, na releitura recente, muito mais um livro sobre o ciúme do que um romance social e regionalista, preocupado em analisar as mazelas da sociedade da época ou discutir as questões políticas como a disputa entre o capitalismo e o comunismo.
Paulo Honório, dono da fazenda cujo nome dá título à obra, resolve escrever suas memórias, mais precisamente sobre sua ascensão e depois a derrocada, passando, claro, pelo seu casamento protocolar com Madalena, professora com ideologias bem distintas do marido. Chama que atenção que o início é semelhante ao de Memórias póstumas de Brás Cubas e ao de Dom Casmurro, de Machado de Assis, primeiro por discutir sobre o porquê das memórias e também como escrevê-las (“Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho”), mas também por demonstrar desde o começo que iria se descrever não com cores positivas, mas sim da forma mais fiel possível, realisticamente, sem se poupar, revelando sua falta de caráter em vários momentos.
Diferentemente de Bentinho, no entanto, Paulo Honório não reconhece que estava apaixonado por Madalena, mas desconfia da esposa em vários momentos. Na verdade, seu sentimento é mais de ciúme em relação a sua propriedade, pois é assim que enxerga a mulher, mais um de seus bens adquiridos durante a ascensão. Aliás, é o mesmo sentimento que nutre pelo filho, que quase não aparece, é apenas citado vez ou outra como mais uma de suas posses. “Madalena estava prenhe”, é frase com que ele anuncia ao leitor a gravidez da mulher, mas logo passa para outro assunto. Nem mesmo narra o nascimento da criança, que aparece na história quando está chorando enquanto ele pensava num problema em uma máquina da fazenda, e só então escreve: “Madalena tinha tido menino.” E só.
Como é o ponto de vista é a do Paulo Honório, não sabemos se Madalena o traiu ou não, assim como não sabemos nada em relação a Capitu. Graciliano também não tenta fazer disso outro enigma como o machadiano, o narrador não diz que seu filho não é parecido com ele, por exemplo, mas a indiferença emocional é bem ressaltada: “Nem sequer tenho amizade ao meu filho. Que miséria!” Seria ciúme agora em relação ao herdeiro, que tomaria posse de tudo o que ele ainda tinha?
É o ciúme do marido que leva Madalena a cometer suicídio. (“O que estragou tudo foi esse ciúme, Paulo.”) Questiono, porém, se ela não o fez movida por um sentimento de culpa.

Homem bruto, com uma vida bruta e que passou por cima de todos para tomar posse do que queria, a vida também acabou sendo bruta e passou por cima dele. Se negociava sempre em benefício próprio, a vida também negociou com ele e agora, no final, cobra com juros o seu preço. Um dos poucos romances que, felizmente, só melhorou com a releitura, diferente de outros que releio. Assunto para outros devaneios crônicos.

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