Apresentação de Charlles Adriano Campos para o meu livro
Apresentação que gentilmente o Charlles Adriano Campos (http://charllescampos.blogspot.com.br/) escreveu para meu livro "Cacos e outros pedaços".
Conheci o Cassionei por essa formalidade já não tão moderna
e já não tão estranha do vínculo de amizade firmado pela internet, sem que
ainda tenhamos nos encontrado no “mundo presencial”. Ele sempre me pareceu
alguém meticuloso, ponderado e adepto a arraigadas sutilezas, talvez porque sua
estampa inspire pensamentos de que seja um bom moço; talvez porque os textos
que ele escreve em seus blogs sejam concisos, bem intimistas, o que privilegia
a impressão de um jovem que já antecipou o uso para si do avatar de senhor de
chinelos felpudos embrenhado em uma poltrona em sua vasta biblioteca, coisa que
o Cassionei de sessenta, setenta e oitenta anos será com absoluta certeza. De
modos que o Cassionei ficou acondicionado em minha mente à imagem de alguém
racionalmente confiável, como convém no meu imaginário ser um idealista dos
livros, um amante das letras. Muitas vezes eu visitava seu blog principal, onde
ele publica textos pequenos, e me deliciava com a firme atmosfera de
vagarosidade incutida. Nada parecia apressá-lo: ele escrevia o que queria, o
que por vezes quer dizer que havia ali muito de obsessões e cacoetes. Podiam
ser obsessões absolutamente triviais, como a perseguição quase cabalística por
um número, ou pelo café, ou pela manutenção em si mesmo da imagem heroica (ou
anti-heroica) do escritor de cachimbo na mão, máquina de escrever antiga e
diante a mesa com trabalho digitado; podiam ser obsessões mais sérias, como o
suicídio, a loucura (com nítidos traços psicóticos surrealistas de Cortázar, o
seu mestre-mor, e Borges), pelo derrotismo do escritor latino-americano, pela
metalinguagem e jogos literários, pelo simples desaparecimento. Ora e outra ele
aparecia em seu blog anunciando em voz nítida que iria parar de escrever, iria
desistir da coisa, e logo em seguida, como se tratasse de uma legião de
personalidades contrapostas em uma mesma figura, retornava com um texto que
indicava que a sanha da palavra continuava e jamais iria morrer, sem a mínima
vergonha na cara. Uma vez ele escreveu uma pantomima sobre política, e eu o rebati
com um extenso comentário, para vê-lo reclamar em seu Facebook de que “fulano
nunca aparece para debater sobre livros, mas quando se trata de política vem
com todo entusiasmo possível”. Foi um erro grave meu, e pedi desculpas para ele
e apaguei meus comentários: ali era a terra do Cassionei, sua caixinha de
areia, seu reino experimental, seu recolhimento. Ali ele fazia o que todo
escritor sério aconselha aos principiantes: escrever como uma criança brinca.
Nós tivemos outras tentativas de debate político, mas, graças a Deus, o bom
ateu que é o Cassionei sempre achava o meio termo simpático de encerrar o
assunto como dois parceiros em um boteco com a frase “nós só entendemos mesmo é
de literatura, Charlles”.
E Cassionei Petry entende muito de literatura. É o que se
percebe mais acintosamente nesse seu terceiro livro publicado que ora o leitor
tem em mãos. Aqui o meticuloso e regrado blogueiro me causou muitas surpresas,
pela forma como consegue dosar todas as suas obsessões mais sérias até
transformá-las em arte. Aqui temos literatura de primeira, com uma estranha
inefabilidade, uma inefabilidade perigosa. Tudo soa tão simples, tão ligeiro,
mas no final de vários contos fica-se com algo entalado na garganta, fica-se
com uma obstrução que impede que se siga adiante até que se possa entender o
que o autor disse ali. Cassionei começa desenvolvendo algo que eu julgava ter
sido abortado em sua face de escritor virtual: a saga com tons cinematográficos
de abdução lovecraftiana do “Eles”, para qual o contista tinha criado um blog
específico para publicar as pequenas narrativas soltas e inconclusas. Lembro de
ao lê-las no blog ter pensado: “não é um bom tema, é um tema preguiçoso”. E eis
que ele ressurge com o tema “Eles”, tendo-o transformado em uma inserção de duplos
sentidos, de variadas interpretações: “Eles” são mera anedota do autor, ou
conjunções que revelam a psicopatia e o abandono dos personagens? Pois o “Eles”
voltou, em sua encarnação impressa, com maturidade, tanto para servir ao humor
metalinguístico quanto para ser um fio condutor dos personagens aos cacos, como
prefigura o título do livro. Essa foi minha primeira surpresa, saber que um
tema secundário foi transformado em algo relevante e verdadeiro para o conjunto
da obra.
Há uma série de outras surpresas, como a de ver que o
cordato homem das letras que eu conheço no cenário virtual sabe dosar com
maestria a brutalidade, o humor e condição humana, sem perder aquilo que é o
mais importante para Tchekhov, o coração terno. Vemos uma peça de absoluta ternura
em “Gabriel”, um conto que eu digo sem relutar ter um primeiro parágrafo
impecável, e que explora através de uma notável técnica de retardar o desenlace
anunciado uma séria de importantes descobertas sobre a vida e as angústias do
narrador. Temos pequenos exercícios deliciosos da tradição literária em contos
como “Ele, o meu duplo” e “A história da pedra”, que são ao mesmo tempo
exercícios de virtuosismo e narrativas exitosas. Temos insights sofisticados e
tocantes, que leva a escrita às consequências mais escatológicas, como em “No
espelho” e “Assim é a vida”. Há fetichismos confessionais brincalhões como
“Quando Bolaño apareceu em meu quarto...”. E temos esse que eu considero o mais
superior dos contos do livro, em que após lê-lo não contive um xingamento em
voz alta como exclamação de estupor diante o mérito de Cassionei: essa
ourivesaria que é o conto “Dudu”.
Há mais bons contos, muitos mais nesse volume. Somente um
escritor com profundo conhecimento do seu ofício é capaz de dar as costas para
certa tendência da moda em escrever narrativas caudalosas, e produzir um livro
aerado e fragmentário como esse. Enquanto lia “Cacos e outros pedaços”, eu
pensava o que Cassionei, esse escritor que sempre está a se despedir do meio
literário, estará planejando em suas futuras obras. Na certa Cassionei Petry
não vai parar de fazer tipo anunciando várias futuras vezes que vai deitar de
vez a pena, mas isso, para o júbilo de seus leitores, mostrou-se ser apenas
mais um elemento do solipsismo em que sua força criadora precisa conservar para
continuar aprimorando suas histórias bastante particulares e altamente
inventivas.
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