Introdução de Sergius Gonzaga para "Cacos e outros pedaços"
(Introdução que o professor de Literatura Sergius Gonzaga gentilmente escreveu para o meu terceiro e talvez último livro, Cacos e outros pedaços. Interessados em obter um exemplar podem pedi-lo pelo e-mail: cassio.nei@hotmail.com)
Eles, o primeiro e deliciosamente humorístico conto de Cacos e outros pedaços já anuncia a
adesão de Cassionei Niches Petry ao fantástico – este gênero marcado pela
intromissão do estranho e do inexplicável no campo da realidade verossímil e
que teve entre seus praticantes gênios literários como Poe e Maupassant, W.W.
Jacobs e Kafka, Borges e Cortázar. No caso, um escritor ansioso por sucesso
recebe suas criações de amáveis criaturas que não apenas lhe repassam os
textos, mas lhe garantem a futura estima do público. Não sabemos quem são esses fantasmas
generosos e tampouco se o que inventam terá o êxito prometido. Porém, como em
todas as obras do gênero, é necessário que haja uma possibilidade (mesmo que mínima)
de interpretação racional dos fatos insólitos, e por isso somos levados a supor
que esses seres invisíveis sejam os demônios íntimos do ficcionista, arrastando-o,
feito uma marionete, à escrita automática e inconsciente. Ou talvez representem
o medo de todo o narrador– pelo conhecimento da impiedade dos críticos e da
volubilidade dos leitores – em expressar de maneira aberta as perversões de seu
projeto imaginativo, preferindo imputá-las a habitantes de outra esfera. Ou,
quem sabe, esses tipos etéreos sejam apenas encarnações do desejo de nomeada,
glória, poder e fortuna, tão comum a jovens artistas. Aliás, nada nos garante
que tais fantasmas não passem de simples... fantasmas.
Os “eles” retornam nos
contos Alice, Cacos, Eles querem te levar, Virgínia e, provavelmente, no miniconto Recado. Continuam incorpóreos, manifestam-se
por meio de vozes roucas ou estridentes, mas agora, já destituídos de
compaixão, deflagram ações amedrontadoras, movidos por uma bizarra obsessão, a
de atormentar escritores. Um desses candidatos ao ofício da escrita, entregue
ao álcool e à maconha, é arrebatado da vida concreta e levado a submergir em um
espaço vazio sobre o qual não temos informações e, ao que tudo indica, será um
mundo de trevas – símbolo da condenação dos letrados à eterna escritura? Outro
desses anônimos criadores de obras literárias tem sua vida transformada em
fragmentos, em cacos que uivam na lata de lixo e o perseguem até a morte. O
vozerio dos demônios, como uma peste, segue oprimindo os artífices da palavra,
transformando suas existências em angústia e exasperação. Dominada por eles, a
pobre Virgínia redige, contra a
vontade, sabe-se lá que terríveis e reveladoras frases, frases que o marido não
pode ler e que a levam ao suicídio. Já o conto Recado compõe-se somente de um aviso ao mesmo tempo lúgubre e cômico:
“Estás demorando muito para organizar os
manuscritos. Deves te dedicar mais ao trabalho, caso contrário pode acontecer
algo na tua vida pessoal.”
De onde procedem essas
vozes intimidatórias, esses bilhetes enigmáticos, esses mergulhos no inferno?
Conseguiremos esclarecer tais mistérios que transcendem à lógica e ao primado
da racionalidade? Tudo isso pode ser explicado como ilusão de sentidos?
Pesadelo? Imaginação deformante? A verdade é que não alcançamos o significado
destes eventos, porque o escritor – astucioso, frio e irônico – manipula com
maestria os princípios da ambiguidade e da ocultação de dados. Com isso,
suspende a realidade prosaica, insinuando que o imaginário desorbitado é mais
esclarecedor do que a visão realista e nos faz girar em torno de um eixo
infiltrado pela dimensão do sobrenatural, mesmo que os elementos fantásticos
funcionem como metáforas da existência concreta e não como aterrorizantes
mensagens do além.
Contudo, os “eles” não
sossegam. Renascem em Eles que se danem,
onde um marido abandonado e solitário redescobre a volúpia do sexo com uma garota
de alta voltagem erótica, e, em meio aos estremecimentos do amor físico,
percebe que “eles batem à porta”, mas se recusa veementemente a abri-la. Em Sim, eram eles essas figuras incorpóreas
adquirem pela primeira vez consistência carnal, concretude humana: são os
pobres desvalidos que “com suas angústias
e suas chagas abertas”, esperam o auxílio do vereador (naturalmente um
escriba) indicando a guinada de Cassionei Petry do onírico e do pesadelo rumo à
ficção de teor realista. Antes disso, topamos com três contos onde as
fronteiras entre a realidade e a irrealidade se justapõem de tal modo que é impossível
distinguir o que neles são fatos do cotidiano ou alucinações do espírito. Do
kafkiano Um nome ao delirante No espelho, filiado ao “fantástico visionário do século XIX”
(expressão de Italo Calvino para designar relatos em que surgem espectros e
monstruosidades que negam por inteiro a racionalidade), e, sobretudo, com o
delicado Lá em cima, história de
acontecimentos mágicos narrados sob ângulo infantil e sustentados por uma
difusa linha entre a fantasia das crianças e o puro terror – nesses contos o
escritor parece encontrar o melhor resultado para a perseguição que move às nuanças
misteriosas da vida e às zonas obscuras do ser.
Entre as narrativas
realistas, Gabriel talvez seja a mais
tocante, lembrando os registros de Sergio Faraco sobre o universo infantil,
enquanto Mikaela e Quando Bolaño apareceu em meu quarto
surpreendem, respectivamente, pelo desfecho à moda de Maupassant e pela
inventiva transbordante. Já Dudu
impacta-nos pelo vigor social com que o autor acompanha a existência de um
menino negro, condenado pelas circunstâncias à brutalidade e ao crime. Porém, é
no último conto do livro que Cassionei – retornando ao fantástico – constrói
uma pequena obra-prima, digna de figurar em qualquer antologia do gênero: Arranhões. Com notável economia de
palavras, omissão de dados e sugestões inquietantes, baseadas apenas em alguns
arranhões sofridos por uma mulher solitária, o conto vai desvelando uma
interioridade em trânsito do desassossego ao desespero e que, pouco a pouco,
perde o domínio da própria mente, mergulhando num estado psicológico de terror
e delírio, sem que saibamos se tudo é projeção de sua alma atormentada ou se,
de fato, seu sentimento de paranoia tem correspondência na realidade exterior.
Assim, o escritor entrelaça com intenso poder persuasivo as duas dimensões da
vida, a subjetiva e a objetiva, nos deixando na incerteza sobre qual delas
determina a situação exasperante vivenciada pela mulher.
No final da leitura de
Cacos e outros pedaços sobra a
impressão alentadora para qualquer leitor ou crítico da descoberta de um
ficcionista ainda jovem, como Cassionei Niches Petry, cujo projeto imaginativo
aponta para realizações de primeira ordem no campo da narrativa. Nestes tempos
tumultuosos em que a literatura parece ser asfixiada pela cultura de massas –
redundante e trivial – obras como a sua constituem uma esperança de
resistência.
Comentários