Na minha coluna no "Crônicas cariocas": "Deixe o quarto como está"



Escrevi na minha coluna de crítica literária no site Crônicas Cariocas sobre a nova edição de "Deixe o quarto como está", de Amilcar Bettega (Companhia das Letras):

https://cronicascariocas.com/cultura/literatura/historias-absurdas-como-a-vida/

Histórias absurdas como a vida


Amílcar Bettega publicou seu segundo livro de contos, “Deixe o quarto como está – ou Estudos para a composição do cansaço”, em 2002. Inexplicavelmente fora de catálogo por um bom tempo, a Companhia das Letras relança a obra agora, já que foi escolhida como umas das leituras obrigatórias do vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

Os 14 contos lembram o mundo de Franz Kafka. Assim como o autor de “A metamorfose”, Bettega consegue tornar os acontecimentos insólitos perfeitamente naturais para o leitor, conduzindo as narrativas como se estivesse contando um fato cotidiano, assim como outro artífice do absurdo, o argentino Julio Cortázar. Isso dá verossimilhança às histórias, característica fundamental de um bom texto literário.

Em “O crocodilo (I)”, por exemplo, o protagonista acaba achando normal andar na rua com um jacaré grudado nas costas, depois de perceber que todas as pessoas também possuem algum animal como, digamos, companhia: “Por vezes só se via uma cabecinha sobressaindo-se à gola da camisa, junto à nuca. Outros deixavam escapar um rabo, uma pata. Em vários era apenas o volume sob a roupa”. Após ler o conto, este resenhista confessa que colocou a mão nas costas para se certificar se havia algum bicho. Levou uma bicada de uma coruja.

Outro personagem, dessa vez no conto “Hereditário”, herda do seu pai uma geleia que que fica colada em sua mão para o resto da vida. Já em “O rosto”, um homem é perseguido por uma face humana dentro de uma casa cujos cômodos surgem e desaparecem espontaneamente. Depois, consegue prendê-la numa gaiola e a alimenta com leite. Tudo normal, concordam?

Se no universo kafkiano a atmosfera asfixiante predomina, nos textos do autor gaúcho perpassa uma sensação de cansaço, como nos aponta o título. No conto “Exílio”, por exemplo, o dono de uma loja se sente fatigado com a rotina de trabalho e resolve ir embora de onde vive. Porém, nota que o trem em que viaja anda, anda, mas nunca sai das fronteiras da cidade. Desiste e acaba voltando (ou ficando). Em “A cura”, por sua vez, um vírus do cansaço toma conta de um povoado, levando as pessoas à morte: “Somos há muito uma gente cansada, que se deixa ficar. Nosso corpo, ali estirado, continua funcionando, urinamos, defecamos, transpiramos, mas se não passa alguém para nos arrastar até o hospital, permanecemos deitados até morrer de inanição.”

Em narrativas como “O encontro” e “Insistência”, Bettega nos mostra que, enfrentando os absurdos da vida, como a burocracia e a insistência dos poderosos em nos abater – temas também caros a Kafka –, há quem resista, embora dê com a cara no muro.

O título do livro, tirado de um texto do contista norte-americano Raymond Carver, retrata bem a sensação que sentimos ao terminar a leitura: não queremos corrigir a desordem provocada no nosso interior, pois uma vida normal nos faz ser menos humanos.

Cassionei Niches Petry - professor 


Comentários

Mensagens populares