Sobre esta pedra edificarei a minha Literatura
Sabine Schlickers, professora de Literatura,
elaborou um conceito para definir as narrativas (literárias ou fílmicas) que, a
partir de procedimentos lúdicos, ou seja, jogos textuais complexos, provocam no
leitor “a surpresa, a confusão, a dúvida ou o engano”. Trata-se da “narração
perturbadora”, que se utiliza de recursos como estratégias enganosas, paradoxos
e enigmas. O leitor se vê enredado em tramas circulares, com narradores não
confiáveis, histórias dentro de outras histórias, referências intertextuais,
pistas falsas e elementos insólitos que o desconcertam, perturbam ou, para usar
de um lugar-comum, o tiram da zona de conforto.
Um escritor brasileiro contemporâneo que “se encaixa” nesse
conceito é Gustavo Bernardo, também estudioso desses temas, em ensaios reunidos
em obras como “O livro da metaficção” e “A ficção cética”. Na prática, os seus romances,
“A filha do escritor” e “Lúcia”, por exemplo, comprovam as teorias de suas
pesquisas, num complemento entre não-ficção e ficção, que muitas vezes se
misturam: seus ensaios se tornam ficção e seus romances se tornam ensaísticos,
numa espiral infinita.
O mais recente filho do escritor é o romance “O fantasma da
mãe” (Globo Livros, 192 páginas, disponível em e-book), em que uma
psicanalista, chamada Iracema (e as referências literárias começam por aí), narra
para um paciente um caso de outro paciente e sua relação com a mãe. Reparem que
os papeis se invertem desde o início, pois quem fala apenas é a analista, que
sonhava em ser escritora, enquanto a outra somente escuta. O filho da mãe, no
bom sentido, se chamava Pedro Rocha. Temos aí um processo de intratextualidade,
pois um dos livros mais conhecidos de Gustavo Bernardo, por circular em
bibliotecas escolares, é “Pedro Pedra”, e o narrador de “Lúcia” é Paulo da
Silva Rocha. Pedro Rocha, filho único e solteiro, vê-se perseguido pelo
fantasma da mãe, Amélia (e aí temos uma referência extraliterária, pois seu
nome vem da canção hoje odiada pelas feministas), não ficando muito claro se é
um fantasma mesmo ou são alucinações de um filho perturbado com os traumas edipianos:
“Entretanto, antes
mesmo do falecimento de seu pai, a relação do meu paciente com sua mãe já era
muito complicada. Por isso, logo me veio à mente que ele poderia ser um caso
clássico de complexo de Édipo.”
Ou seja, estamos diante de uma narrativa de terror ou uma
narrativa psicológica? Até que ponto podemos confiar no que ele narra? Ou
ainda, até que ponto podemos confiar no que a terapeuta narra? E outra: quem é
a idosa ouvinte dessa narração? Seria uma projeção do próprio leitor?
Um dos lugares em que o fantasma da mãe aparece é no
espelho. Em um capítulo de “A ficção cética”, Gustavo Bernardo aborda os
perigos do espelho, entre os quais ficar olhando sempre para eles, como o Narciso
do mito, contemplando sua beleza refletida em um lago e depois se transformando
numa planta, em uma das versões. A Literatura é um espelho em que nos
contemplamos. Portanto, é um perigo. Mas vale a pena correr esse perigo. Tudo
vale a pena, se a Literatura não é pequena.
Comentários