O audaz Herberto Sales
Herberto Sales foi um escritor que se reinventou a cada
livro publicado. Do romance regionalista “Cascalho”, com o uso da linguagem do
interior da Bahia, mais precisamente dos trabalhadores das minas de diamante,
passando pela ficção científica de “O fruto do vosso ventre”, nos contos de “Armado cavaleiro o audaz motoqueiro”,
publicado em 1980 pela Civilização Brasileira e hoje só encontrado em sebos, experimentou
novas formas de narrar, incluindo estratégias que jogam com as expectativas do
leitor.
Membro da Academia Brasileira de Letras, Herberto Sales teve
um reconhecimento durante algumas décadas, recebendo prêmios importantes. Nos
últimos anos, caiu no esquecimento, acredito que por ter um viés conservador em
suas ideias políticas, tanto que foi elogiado por uma figura como Olavo de
Carvalho, um Midas às avessas, que detesta quem é de esquerda, esta que, por
sua vez, escanteia quem não faz parte da turma. Mesmo depois de ser eleito imortal
da Academia, Herberto Sales escreveu um conto paródico que é a “Casa dos Trinta”,
em que imagina uma agremiação que reúne a nata da bandidagem carioca. Sobre a
proliferação de academias que reúnem escritores, o narrador faz uma crítica
mordaz:
“Alguns dos membros da
Casas dos Trinta, aliás, imaginavam a princípio que só houvesse no Brasil uma
Academia de Letras. Evidentemente, ainda ignoravam que o Brasil era o país que
mais dispunha de escritores. De modo geral, todo brasileiro era um escritor.
Quando o governo, em seu esforço para erradicar do país o analfabetismo,
desenvolvera paralelamente programas destinados a criar o hábito de leitura,
para evitar que o analfabeto alfabetizado, deixando de ler depois de o haver
aprendido, tudo esquecesse e voltasse a ser analfabeto – em verdade o que se
criava não era propriamente o hábito de leitura, mas o hábito de escrever. É que
o brasileiro, mal começava a habituar-se a ler, passava sem demora a escrever,
para que outros o lessem. Com isso, em vez de aumentar o número de leitores,
aumentava o número de escritores. E como os escritores, por tradição, não se
leem uns aos outros, ficavam sem leitores os escritores, e os escritores sem
editores. Daí a razão pela qual no Brasil, na medida em que mais se escrevia,
menos se lia; assim como na medida em que menos se lia, menos livros se vendia”.
Como diz o outro, isso explica muita coisa.
Em contos como “O terceiro idioma” e o que dá título ao
livro, Herberto trabalha com a linguagem jovem dos anos 70, que era reproduzida
na televisão e se tornava um idioma próprio, como diz um professor de português
no primeiro conto. Em “Sede de vingança” e “Edgarzinho ou atos que não se
praticam”, o tema é o funcionalismo público e as puxadas de tapete entre
colegas. Em alguns dos relatos, como “O possível consolo”, o autor se insere na
narrativa, quando os personagens o mencionam:
“... como diz Herberto Sales. (...) um camarada que eu conheço, um escritor”.
Vale ainda destacar o
exercício intertextual em “Teoria do executivo”, em que Sales reescreve o conto
“Teoria do medalhão”, de Machado de Assis, numa bela e criativa homenagem ao
mestre: “ – Pois é, meu caro filho: até
parece que foi ontem... Você, um garotinho de Jardim de Infância, hoje um homem
feito, que acaba de transpor os umbrais da universidade”.
Herberto Sales escreveu em “SubsiDiário – confissões,
memórias e histórias”: “Para fazer Literatura no Brasil é preciso estômago.
Principalmente, é preciso não ter vergonha”. Para nossa sorte, o escritor foi
audaz. Resta aos leitores o redescobrirem.
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