Quero o Altair Martins de volta
Altair Martins é
um escritor gaúcho cuja obra se notabilizou pelo trabalho experimental com a
linguagem. O impacto de ler contos como “Humano” se dá não só pela história
dolorosa da relação decadente de um casal, mas também pela maneira como a
narrativa é conduzida, no uso de repetições e alterações no ritmo das frases,
fazendo com o que o leitor volte nas linhas anteriores para se reencontrar com
os fios da trama, muitas vezes sem conseguir, ficando atônito com o que está
lendo. Não por acaso intitulei uma resenha sobre seu primeiro romance, “A
parede no escuro”, como “Impacto na escuridão”: o leitor é atropelado e jogado
com força contra um muro e quando se levanta, todo machucado, não vê quem o
atropelou.
Há, no entanto, quem não goste disso e prefira um enredo
linear, de mais fácil leitura, que dê destaque à história. Altair, pelo que
revelou em entrevistas, tentou escrever assim, em busca de novos leitores, seguindo
o alerta de um amigo, pela pouca repercussão de “Terra avulsa”, romance que, para
este crítico interiorano e cuja repercussão também é pouca, é uma das melhores
obras do autor.
O romance “Os donos
do inverno” (Não Editora, 255 páginas) é uma boa história, tem traços de
invenção linguística, flerta com o realismo mágico, dialoga com o gênero “road
movie”, traz o tema da relação conflituosa entre irmãos e até discute questões
ecológicas. O enredo gira em torno de dois irmãos de criação, Elias e Fernando,
que decidem levar a ossada do irmão mais velho, morto há duas décadas, da
cidade de Guaíba, região metropolitana de Porto Alegre, até um evento de turfe
em Buenos Aires, na Argentina. O intuito é homenagear a memória do irmão, o
jóquei Carlito, que iria participar em uma edição da corrida, mas sofreu um
acidente. Acontece que, depois da perda, ambos deixaram de se ver durante
décadas.
A reaproximação se dá quando Elias, professor de Biologia,
recebe uma mensagem de um cavalo no pátio da escola (eis o elemento insólito da
história, o seu dom de falar com os equinos), o que o leva a ligar para
Fernando, dono de um táxi, e contar o seu plano. E é nesse táxi que empreendem
a jornada, ao mesmo tempo em que relembram cenas do passado, tentando entender
tudo o que aconteceu e dirimir culpas, desde quando eram amigos de infância e,
pelos fios das Moiras, se tornaram irmãos.
A obra é horizontal, plana, flui como a estrada que os
protagonistas pegam rumo à missão dada por eles mesmos. Sutil é o foco narrativo,
na primeira pessoa do plural que, quando se refere aos personagens, jamais usa o
“eu”: “Então nos olhamos e saímos do hipódromo correndo. O Fernando na frente e
depois o Elias, até que, quase juntos, carregando as sacolas do Carlitos,
chegamos à calçada. Sentimos felicidade, e é tanta que paramos para respirar
quase assustados de estarmos assim”. É o leve toque da inventividade de Altair
Martins, mas pouco para quem se arriscou, aos 20 anos de idade, a escrever
frases como “Era um homem que batia ferro como se moesse músculos”. Quero o
Altair Martins de volta.
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