Terron no Traçando Livros de hoje
Mórbidas semelhanças
O Cairo é somente um amontoado de ruínas de algo que se passou há muito tempo. Algumas pessoas também são meras ruínas do que viveram.
(trecho do romance)
Como o Egito está nas últimas semanas em todos os noticiários, recomendo a leitura de um romance passado boa parte no Cairo. Trata-se de Do fundo do poço se vê a lua, de Joca Reiners Terron (Companhia das Letras, 280 páginas). O livro faz parte da coleção “Amores Expressos”, projeto que levou escritores a diferentes capitais do mundo para que escrevessem romances sobre o amor ambientados nesses locais. Terron é um dos principais nomes da nova geração da literatura brasileira. Inventivo, experimentalista, sabe também dialogar com a tradição, tanto que seu recente romance segue a linhagem de obras que tratam das diferenças entre irmãos gêmeos: Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e Dois irmãos, de Milton Hatoum.
O enredo de Do fundo do poço se vê a lua inicia quando William recebe, em São Paulo, um cartão postal com a foto de Elizabeth Taylor caracterizada como a Cleópatra de um dos clássicos do cinema. A mensagem diz para ele ir ao Egito: “Acho que afinal me lembrei de tudo”. A assinatura está rasurada, mas ele presume que é do seu irmão gêmeo Wilson, desaparecido há 20 anos. Chegando ao Cairo, não o encontra, mas acaba sabendo em quem ele se transformara. Enquanto isso, é observado por Cléo - novo nome de Wilson – que narra a história de dentro de um poço, relembrando os fatos decisivos da vida de ambos, desde a barriga da mãe, passando por uma enchente em São Paulo, perda de memória, uma operação de troca de sexo, até chegar aos “inferninhos” da cidade do Cairo.
Os gêmeos William e Wilson – filhos de uma fugitiva da ditadura militar, que morreu no parto, e de um ator teatral, que os criou sozinho – afora a aparência, são diferentes em tudo. Quando crianças, William gostava de brincar de faroeste, enquanto Wilson preferia se vestir de mulher. Percebendo a vocação de ambos, o pai os coloca para trabalharem junto com ele no teatro em peças que representam a tradição do duplo, ou doppelgänger.
Aqui poderia haver um equívoco na obra. O duplo não é um gêmeo, mas sim outro ser. A expressão alemã doppelgänger se refere a lendas sobre um ser idêntico a uma pessoa e que geralmente são representações do mal ou do lado negativo dela, tentando sempre prejudicá-la. Uma das histórias mais famosas sobre o duplo é o conto William Wilson, do americano Edgar Allan Poe, que inspirou os nomes dos personagens do livro de Terron. Seria um erro, portanto, misturar as histórias ou lendas de gêmeos, como Caim e Abel e Rômulo e Remo – bem como o dualismo das religiões – com a questão do duplo. No entanto, essa relação aparentemente forçada pode fornecer indícios para o leitor mais atento decifrar o subtexto.
Joca Reiners Terron gosta de citar obras literárias e elementos da cultura em geral nas suas histórias. O autor é um metaficcionista de primeira, que agrada àqueles que vivem 24 horas por dia pensando em literatura, como esta traça que vos escreve. Mas de nada adiantaria a técnica e as referências literárias se não houvesse uma boa história a ser contada. E isso Do fundo do poço se vê a lua nos proporciona.
Cassionei Niches Petry é professor e tem um duplo que é escritor e atormenta sua vida. Colabora quinzenalmente com o Mix e edita o blog www.cassionei.blogspot.com.
Comentários