Para se ler bebendo cerveja

 



Nas frestas do cotidiano se escodem vozes, sombras, resquícios de vida e o sopro da morte. Os contos (ou flashes) de Dias e noites (Editora República_af, 188 páginas), do baiano Toni Araújo, não revelam os esconderijos desses espíritos sorrateiros que se intrometem no dia a dia das pessoas. É o que está escamoteado que faz com a que a obra do escritor permaneça ecoando no leitor depois do ponto final. O que aconteceu, nos perguntamos? O que eu acabei de ler, me pergunto?

Terei lido minicontos em que pouco ou quase nada acontece, em que não há enredo, embora o subtítulo do livro mencione que são histórias? O que acontece com os pais que perdem seus filhos, invertendo o fluxo normal da vida? São os mesmos que depois bebem cerveja e whisky nos bares, afogando mágoas? Ou que bebem em busca de histórias, entreouvidas no balcão dos bares?

Se faço perguntas, é porque o livro não me traz certezas. Não posso afirmar nada sobre a leitura. Defeito? Não, é qualidade. A boa literatura nos inquieta, não nos traz luz (dias), mas sim escuridão (noites). O que dizer da enfermeira que sente dor ao saber, depois de já estar no conforto do seu lar, da morte de uma criança que cuidou com esmero no hospital, vítima de um acidente envolvendo estudantes? “Era um choro pela criança morta e por seus pais. E um choro desesperado por si própria, por sua humanidade ferida”. As crianças são personagens constantes das, vá lá, histórias, e o que representaria vida, ganha significado no seu oposto.

Os portais (não por acaso, “Portais” é um dos títulos dos textos) abertos nos contos de Toni Araújo levam do nada a lugar nenhum (“Tudo agora virou nada”), afinal, a vida não tem sentido, embora os narradores vez ou outra tentem encontrar uma razão de existir a partir da criação divina. “Vó me disse que não tem como Deus não existir, que os milagres estão aí pra provar”. Sair de casa é um desses portais, quando “um homem ordinário com espírito ordinário e problemas ordinários” ganha na loteria e tenta fugir de sua “vida ordinária e as preocupações que, agora ele sabia, davam sentido à sua existência”. O sentido da vida, portanto, seria a própria vida?

O melhor conto se chama “Culpa”, que está no meio do livro, mas poderia estar no fim. Conta a história de um homem que sobe na mesa de uma biblioteca pública e grita “Eu sou culpado!”, sob o olhar atônito dos funcionários  e dos leitores. Sua culpa é nunca ter se sensibilizado o suficiente com a literatura, por nunca ter lido os grandes autores, por não ter sofrido junto com as personagens e, por isso, merece uma punição (“não terei a redenção ofertada com toda a misericórdia por Dostoiévski a Raskolnikov”). Um bom conto, que ficaria melhor no final, pois mostra que nem mesmo a literatura nos traz alento em nossas vidas tão medíocres.

Salvo engano, Noites e dias é a primeira obra de um escritor que já tem mais de 50 anos de idade. Não é um novato, portanto. Aliás, Toni Araújo já anuncia que vem um novo livro por aí. Aguardemos.

Comentários

Toni Araújo disse…
Honrado com essa resenha!
Unknown disse…
Ótimo comentário.
Aguardando o próximo livro Toni!
Parabéns!

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