Sobre a 2ª edição de Herdando uma biblioteca, de Miguel Sanches Neto
De heranças e livros
por Cassionei Niches Petry
A trajetória de leitor e as reflexões sobre o objeto livro em Herdando uma biblioteca nos transportam e nos fazem valorizar mais o livro impresso, as marcas que eles nos deixam, as marcas que deixamos neles e as marcas que outros fatores deixam nos exemplares. Aliás, tenho duas edições da obra. A 1ª, de 2004, comprei num sebo e há um furo de traça a partir da capa e que ultrapassa todas as páginas. A 2ª, revista e ampliada, publicada pela Ateliê Editorial em 2020, me foi enviada gentilmente pelo próprio autor junto com outro livro. O pacote foi deixado pelo carteiro sobre a caixa de correio, porém acabou chovendo. Os livros estavam plastificados, porém não impediu que um deles ficasse úmido, causando um pequeno rasgo na capa, além de “rugas” que deram um aspecto de envelhecido ao exemplar. A traça e a umidade estão elencadas entre “Os inimigos da biblioteca”, um dos capítulos acrescentados na nova edição.
Em
princípio é um livro de crônicas. Pode, porém, ser lido como um romance, que
tem como protagonista o Miguel que se torna leitor, escritor, crítico e professor.
Até certo ponto, o me vejo nessas páginas. Assim como ele, também tive
uma Bíblia com a tradução de João Ferreira de Almeida. Meus primeiros livros
também foram os escolares herdados de parentes. Também não havia biblioteca na
minha casa. Também sou do interior. Também me formei como leitor em bibliotecas
escolares e públicas. Também roubei livros. ("Roubar livros que nos
solicitam amorosamente é uma forma de herdar à força uma biblioteca que nos foi
negada.") Também comprei muitos livros em sebos. Meus primeiros livros
também foram colocados em algumas prateleiras do armário de roupas do meu
quarto. Também recebi e recebo alguns livros (não tanto como o Miguel), devido
à atividade (só que, no meu caso, não remunerada) de crítico literário. (A
propósito, este texto que escrevo não é uma crítica literária e sim, quem sabe,
uma crônica ou somente impressões pessoais de leitura. Impossível ser objetivo
com esse livro, pois ele me pegou emocionalmente, inclusive na releitura.)
Minha identificação se encerra no momento em que a
personagem Miguel se torna um escritor reconhecido e professor universitário.
Continuo aqui na minha vidinha de escritor desconhecido e um simples e discreto
professor de escola pública, municipal e estadual, numa cidade do interior do
Rio Grande do Sul. Também não tenho uma vasta biblioteca ainda. Herdo daquelas
pessoas que me influenciaram, entre elas o Miguel da vida real, esse gosto meio
estranho por um objeto quadrado em que mentes privilegiadas descarregaram suas
angústias, sofrimentos, conhecimentos, habilidades com a palavra. Herdo dos
livros que li a vontade de ter mais livros, de me desfazer dos ruins para dar
lugar aos bons, de conhecer outros e esquecer alguns. Foram os livros que me
formaram e depois me deformaram. Eles me construíram e também me destruíram.
Construo uma biblioteca para que ela me destrua, portanto. Mesmo assim não
deixo de preencher prateleiras e mais prateleiras, comprar livros e também
ganhá-los. “Cada livro que colocamos em nossas estantes”, escreve o Miguel, “é
uma peça a mais nesse complexo quebra-cabeça que nunca chega a se completar.”
Mais Miguel Sanches Neto aqui neste moribundo espaço literário:
https://cassionei.blogspot.com/2010/09/meu-texto-sobre-o-cha-das-cinco-com-o.html
https://cassionei.blogspot.com/2015/07/a-segunda-patria-de-miguel-sanches-neto.html
https://cassionei.blogspot.com/2016/09/acabei-de-descobrir-que-fui-traduzido.html
https://cassionei.blogspot.com/2015/03/no-tracando-livros-de-hoje-escrevo.html
https://cassionei.blogspot.com/2016/07/a-biblia-do-che-de-miguel-sanches-neto.html
https://cassionei.blogspot.com/2018/09/a-vida-gira-como-roda-de-uma-bicicleta.html
https://cassionei.blogspot.com/2020/09/sobre-livros-que-chegam-molhados-toca.html
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