No Traçando Livros de hoje, escrevo sobre livro de Miguel Sanches Neto

De heranças e livros

É difícil eu me identificar com algum livro. Geralmente não gosto de me identificar. Aliás, o uso desse verbo é um clichê de que não gosto. Mas vez ou outra eu uso. Somos refém de clichês, não adianta. Este livro do Miguel Sanches Neto, no entanto, diz coisas que eu gostaria de dizer, traz momentos que também vivenciei, produz aquela sensação de “eu já passei por isso”.
A trajetória de leitor e as reflexões sobre o objeto livro em “Herdando uma biblioteca” (Record, 2004,  140 páginas) nos transportam e nos fazem valorizar mais o livro impresso, as marcas que eles nos deixam, as marcas que deixamos neles. Curiosamente, comprei esta edição num sebo e há um furo de traça em suas páginas. Outra traça marcou sua passagem por ali. Chegou a minha vez.
Em princípio é um livro de crônicas. Pode, porém, ser lido como um romance, que tem como protagonista o jovem Miguel que se torna escritor e professor. Assim como ele, também tive uma Bíblia com a tradução de João Ferreira de Almeida. Meus primeiros livros também foram os escolares herdados de parentes. Também não havia biblioteca na minha casa. Também sou do interior. Também me formei como leitor em bibliotecas escolares e públicas. Também roubei livros. ("Roubar livros que nos solicitam amorosamente é uma forma de herdar à força uma biblioteca que nos foi negada.") Também comprei muitos livros em sebos (este próprio vem de um). Meus primeiros livros também foram colocados em algumas prateleiras do armário de roupas do meu quarto. Também recebi e recebo alguns livros (não tanto como o Miguel), devido à atividade (só que no meu caso não remunerada) de crítico literário. (A propósito, este texto que escrevo não é uma crítica literária e sim, quem sabe, uma crônica ou somente impressões pessoais de leitura. Impossível ser objetivo com esse livro, pois ele me pegou emocionalmente.)

Minha identificação se encerra no momento em que a personagem Miguel se torna um escritor reconhecido e professor universitário. Continuo aqui na minha vidinha de escritor desconhecido e um simples e discreto professor de escola pública numa cidade do interior do Rio Grande do Sul. Também não tenho uma vasta biblioteca ainda. Herdo daquelas pessoas que me influenciaram, entre elas o Miguel da vida real, esse gosto meio estranho por um objeto quadrado em que mentes privilegiadas descarregaram suas angústias, sofrimentos, conhecimentos, habilidades com a palavra. Herdo dos livros que li a vontade de ter mais livros, de me desfazer dos ruins para dar lugar aos bons, de conhecer outros e esquecer alguns. Foram os livros que me formaram e depois me deformaram. Eles me construíram e também me destruíram. Construo uma biblioteca para que ela me destrua, portanto. Mesmo assim não deixo de preencher prateleiras e mais prateleiras, comprar livros e também ganhá-los. “Cada livro que colocamos em nossas estantes”, escreve o Miguel, “é uma peça a mais nesse complexo quebra-cabeça que nunca chega a se completar.” 

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