Contos dissimulados

 

Mais um pequeno grande livro desse notável escritor que é Marcio Renato dos Santos. Desde Minda-Au (2010), o primeiro de mais de dez livros publicados (já escrevi sobre alguns deles aqui, aqui, aqui e aqui), o contista nos oferece uma prosa minimalista, em que o não-dito é o mais importante. Em Maestro sem orquestra (Editora Máquina de Escrever, 80 páginas), são flashes do cotidiano, instantâneos da vida, imagens tiradas e reveladas por um fotógrafo sem máquina fotográfica. Como atesta o trecho da epígrafe do livro, buscada no conto “Apocalipse de Solentiname”, de Julio Cortázar, são “fotos para a posteridade”.

Sempre busco, ao ler a obra do Marcio, um fio condutor. Pensei que seria a música, por causa do título. Logo percebi, no entanto, que seria a fotografia, pelo menos em contos como “Rosto imóvel” (“Em sua página do Instagram, o Davi aparece com a massa na mão.”) e “Revelação” (“Quatro amigos olham para quem observa a foto: elas, eu, nós, você.”). “Outro simulacro”, que abre o livro, permite-nos interpretar que as imagens são representações da realidade e não a própria, o que de certa forma define as histórias da coletânea, já que a própria obra questiona a sua existência e, às vezes, deixa claro que o leitor está lendo uma cópia, embora imperfeita, da vida, um “simulacro do suposto real”.

Nessa verve metalinguística, Narciso olha para a sua própria imagem revelada no lago. O escritor se volta sua própria obra e chama o leitor: venha ver meu rosto junto comigo. “O público tem acesso a meu ponto de vista?”, questiona o narrador de “Já não passa nada?”, cujo personagem, o compositor Thomas, é um simulacro de um compositor incompreendido pelos críticos: “a canção em que o Thomas diz ser mais fácil aprender um idioma do leste asiático em braile do que a pessoa  desejada não vacilar”. Por coincidência, li o livro num dia frio, em um bom lugar, o pensamento longe...

No conto que dá título ao livro, o personagem Raul revela ser um personagem e diz que uma “voz narrativa vai apresentar um fragmento de minha jornada, nada extraordinário”. Um Narciso humilde?

Boa parte das histórias se passa na cidade fictícia de Entrepostos. Nome sugestivo, já que denota um lugar de intenso comércio. O melhor conto de Maestro sem orquestra, “Os livros dele”, imagina um futuro talvez não muito distante em que esses, segundo Caetano, “objetos transcendentes” que podemos amar “do amor táctil”, venham a se tornar raros, pelo menos no modo impresso, vendidos por muito dinheiro e sendo por isso alvo de contrabandistas. Não à toa, deixo os meus muito bem guardados, entre eles, quase todos os escritos por Marcio Renato dos Santos.


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