Pela liberdade de não crer
O artigo de Percival Puggina, publicado na edição dominical de Zero Hora do dia 19 de dezembro de 2010, erra já no título, “Guerra contra Deus”, ao pretender criticar o movimento ateísta. Ora, os ateus e agnósticos não estão promovendo nenhuma guerra contra o deus cristão. Nem contra outros deuses. Tampouco é uma guerra. A campanha dos ônibus promovida pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) visa tão somente defender os descrentes contra o preconceito. Preconceito, aliás, confirmado pelo conteúdo desse mesmo artigo.
O articulista distorce totalmente os fatos ao fingir desconhecer as motivações religiosas dos ataques de 11 de setembro. Havia somente motivos políticos, afirma, mas se esquece de dizer que a política dos mentores do atentado é teocrática. Além disso, o anúncio da campanha a que ele se refere não afirma que todos os religiosos promovem atos terroristas, muito menos declara que os descrentes também não o fazem. A frase do anúncio, “Se Deus existe, tudo é permitido”, é justamente uma inversão de outra erroneamente atribuída ao escritor russo Dostoiévski e amplamente divulgada por quem acredita serem os descrentes os culpados pelo mal no mundo: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.
A campanha também não diz que a Igreja não investigou filosoficamente as perguntas existenciais, mas sim que é o fiel que não pode investigar, perguntar, ter dúvidas, afinal, demonstraria pouca fé. Não é o que diz a Bíblia, caro Puggina? A foto do preso lendo o livro sagrado dos cristãos conota também que não é apenas quem não tem “Deus” no coração que comete crimes, como apregoou há alguns dias José Luiz Datena no seu programa de televisão.
O autor do texto também diz ser um sofisma afirmar que “a crença em Deus foi o fato gerador das patologias de Hitler”. Sofisma quem comete é o próprio Puggina, pois o anúncio ao qual ele se refere não diz isso em nenhum momento. A frase é bem explícita: “Religião não define caráter”. Ora, Hitler acreditava em um deus e fez o que fez, assim como Stálin não acreditava e cometeu atos tão bárbaros quanto o ditador alemão. Por outro lado, Charles Chaplin, ateu, e Francisco de Assis, santo da igreja católica e citado pelo articulista, eram pessoas de bem.
O artigo termina com mais um equívoco. A campanha não ataca a “fé religiosa da maioria da sociedade”, mas sim tenta defender a minoria dessa mesma sociedade que não pode se expressar sem ser acusada de ferir os preceitos constitucionais. Se deve haver liberdade e respeito à crença, vale o mesmo para quem não acredita. Como tenho certeza que o articulista sabe interpretar textos, pois sou seu leitor há muito tempo e admiro sua erudição, é porque o seu objetivo é justamente o de calar os que têm dúvidas, atitude histórica das religiões em geral.
Comentários
Estava mais do que na hora de reagirmos - ateus e agnósticos - contra a imbecilização galopante a pretexto religioso, que atinge de campos de futebol a ambientes acadêmicos. Contra a intolerância religiosa, é preciso agirmos com firmeza não-religiosa, sem confundi-la com intolerância anti-religiosa.
Acho que foi Paulo Emílio Salles Gomes que disse: "Eu não tenho fé, mas persevero."
abraço