Falando sobre a minha doença no Traçando Livros de hoje
Minha página no Mix de hoje no jornal Gazeta do Sul, sobre Enrique Vila-Matas: http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/323208-enfermidade_literaria/edicao:2012-01-11.html
Enfermidade
literária
Cassionei Niches Petry
Sou um homem doente. Não como o “homem do subsolo”, de Dostoiévski,
pois não sou mau, tampouco sofro do fígado. Minha doença é a literatura. Há
pouco fiquei sabendo: minha irmã, que é manicure, tem uma cliente que me viu de
pé, escorado numa parede, na frente de um grande supermercado da cidade, onde
esperava minha esposa sair do trabalho, no meio de uma movimentação intensa de
véspera de Ano-Novo. E eu estava lendo! Imagine! “Só pode ser doente”, disse a
senhora. Tenho que admitir que talvez esteja mesmo, mas não pretendo me curar.
Se os leitores querem me dar uma força, torçam para que eu não me cure jamais.
A doença foi muito bem diagnosticada em um livro de outro doente e
dá título ao volume, O mal de Montano, do escritor
espanhol Enrique Vila-Matas (CosacNaify,
tradução de Celso Mauro Paciornik, 328 páginas). Trata-se de uma enfermidade
cujos sintomas são: viver “rodeado de citações de livros e autores”; “mania de
ver tudo a partir da literatura”; “obsessão pelo mundo dos livros” – chamada de
literatosis, expressão criada por
outro doente, o uruguaio Juan Carlos Onetti –; tentar ser, encarnar, se
converter “em carne e osso na literatura”; ler, ler, ler e, claro, querer
escrever literatura, transformar tudo em literatura.
Toda a obra de Vila-Matas se caracteriza por esse mal. Há sempre
personagens que são escritores, críticos literários ou editores – como no
romance mais recente, Dublinesca –
que citam outros escritores, outros livros, que discutem sobre o fim da
literatura, sobre o bloqueio criativo, sobre a recusa em escrever – tema do
romance mais famoso do escritor, Bartleby
e companhia –, sobre grupos de escritores que seguem regras de escrita e de
comportamento – em História abreviada da
literatura portátil –, sobre escritores que resolvem simplesmente
desaparecer – em Doutor Pasavento, já
resenhado aqui no Traçando Livros – sobre livros que matam quem os lê – em La asesina ilustrada, ainda não
traduzido para o português – e sobre escritores que tentam imitar a vida de
seus ídolos literários – caso de Paris
não tem fim, em que o autor conta seu início de carreira, em que tentava
ser igual à Hemingway. Além disso, os textos de Vila-Matas se confundem muitas
vezes com a sua própria vida, e não sabemos o que é real e o que é ficção.
O
mal de Montano, de certa forma, resume todas as obsessões do autor. É dividido em
cinco partes bem distintas, que surpreendem o leitor pelas mudanças de rumo.
Logicamente não vou revelar quais são as mudanças. O que posso dizer é que, na
primeira parte, há o relato de um crítico literário cuja esposa, Rosa, o aconselha
a viajar para o Chile a fim de tentar se livrar de sua enfermidade literária. Lá,
passa a virada do século com uma aviadora amiga do casal, que nunca falava
sobre literatura, e com o homem mais feio do mundo, Tongoy, um duplo do
Nosferatu do cinema. Tongoy o orienta a, em vez de se preocupar com sua doença,
tentar impedir a morte da literatura. O crítico tem um filho que mora na
França, cujo nome é Montano, que sofre de um bloqueio criativo depois de
escrever um romance sobre escritores que deixam de escrever. Inspirado num
conto do filho, o crítico cria um mapa geográfico do mal de Montano para viver
a literatura e evitar seu desaparecimento.
Na segunda parte, há uma desconstrução da primeira. Temos agora
uma espécie de enciclopédia sobre os escritores preferidos de Rosario Girondo,
que ficamos sabendo ser o narrador da primeira parte. É revelado também que sua
doença literária poderia ter sido herdada de sua mãe, que escrevia diários e
poemas. Na terceira parte, os relatos anteriores são mais uma vez descontruídos
em uma conferência proferida por Girondo, em Budapeste, sobre diários pessoais
de escritores. Na quarta parte, outro diário põe mais dúvidas sobre os relatos.
Por fim, a quinta parte fecha o livro com uma narrativa metafísica.
Já escreveram que Vila-Matas é um escritor somente para
escritores. Sua obra é metaliterária ao extremo, o que afasta muitos leitores e
críticos os quais defendem outros temas da nossa vida mais relevantes para
serem discutidos pela literatura. No entanto, como o narrador de O mal de Montano escreve, “entre a vida e
os livros, fico com estes, que me ajudam a entendê-la. A literatura tem me
permitido sempre compreender a vida. Mas precisamente por isso me deixa fora
dela. Digo sinceramente: está bem assim”.
Cassionei
Niches Petry é mestrando em Letras pela Unisc, com bolsa do CNPq. Desde criança
sofre do mal de Montano. Escreve quinzenalmente para o Mix e mantém o blog
cassionei.blogspot.com.
Comentários
Uma fala do cineasta Frank Capra, sobre cinema, mas que se aplica igualmente aqui:
"Film is a disease. When it infects your bloodstream, it takes over as the number one hormone; it bosses the enzymes; directs the pineal gland; plays Iago to your psyche. As with heroin, the antidote to film is more film."
Abraço!
Abraço.
Também não quero ser curado dessa doença!
Abraço,
Att.
Tamara Rodrigues