Fracasso recomendável



O Traçando Livros de hoje, página que publico quinzenalmente no jornal Gazeta do Sul, caderno Mix. O título aí em cima foi dado pelo pessoal do jornal, mas combinou bem com o espírito da minha pseudoresenha. O título original está abaixo e ficou como "cabeça" da matéria. http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/362777-fracasso_recomendavel/edicao:2012-08-15.html

Seis motivos para ler o novo livro de Vila-Matas, Ar de Dylan, e uma coda dispensável


1
O escritor espanhol Enrique Vila-Matas é um apaixonado pela literatura. “Mas todos os escritores não o são?”, pergunta o leitor. Infelizmente não, eu respondo. Há muitos que veem na publicação de livros apenas como forma de se ganhar fama e admiração, sendo lidos por milhares de pessoas, fazendo, para tanto, um tipo de escrita mais acessível para o grande público. Não espere isso de Vila-Matas.
2
Ele vive tão intensamente a literatura, que faz dela seu principal tema. Escritores que deixam de escrever, que desejam desaparecer, que sofrem de um mal que o fazem confundir vida e ficção, que se reúnem em sociedade secretas literárias, que seguem os passos de seus ídolos da escrita, editores que assistem ao fim dos livros e seu funeral. O leitor que entra nesse mundo vila-matiano, se não tem uma bagagem de leituras muito grande, acaba procurando as obras e os autores citados para buscar conhecê-los, mesmo que às vezes não os encontre, pois boa parte é criação do autor, seguindo os passos de Jorge Luis Borges.
3
Seu romance mais recente, Ar de Dylan (Cosacnaify, tradução de José Rubens Siqueira), também tem escritores e muitos livros, mas não apenas isso. O protagonista (será que há um protagonista?) é um cineasta, Vilnius Lancastre, que chama a atenção das pessoas por ser muito parecido com o cantor Bob Dylan quando jovem. O livro, portanto, pode agradar quem gosta de cinema e de música.
4
Vilnius é filho de um escritor famoso, Juan Lancastre, que havia sido convidado para palestrar em um congresso sobre o fracasso, mas acabou morrendo antes disso. Vilnius o substitui e escreve uma conferência sobre o tema. Ele gostaria de fracassar na própria leitura do texto, o que acaba conseguindo apenas parcialmente, pois a extensão e a monotonia começam a espantar a plateia. A tentativa de fracassar lendo sobre o fracasso se torna um fracasso, no entanto, pois uma pessoa permanece até o fim: o narrador da história.
5
O romance retoma, sob o prisma metaliterário característico de Vila-Matas, referências à peça Hamlet, de Shakespeare. Assim como o fantasma do rei da Dinamarca aparece para seu filho denunciando seu assassinato perpetrado pela esposa e pelo irmão que toma o poder, o espectro de Juan Lancastre infiltra-se na memória de Vilnius, avisando que a esposa, Laura Verás, e seu amante, Claudio Maxwell, lhe provocaram um ataque cardíaco. Vilnius, como Hamlet, tenta descobrir a verdade, assim como encontra em Débora a sua Ofélia e no narrador o amigo Horácio, com quem desabafa. Há mais coisas em Ar de Dylan do que sonha nossa vã filosofia.
6
“A arte é, também, fugir do que acham que você é ou do que esperam de você”, diz Vilnius em certo momento da história. Ar de Dylan é um exemplo de arte sofisticada, povoada de referências literárias e extraliterárias, e, como toda boa literatura, aborda as questões humanas mais angustiantes, nesse caso, o fracasso. Por isso, é uma obra altamente recomendável.
7 
Espero não ter fracassado ao escrever sobre mais esse esplêndido romance de Vila-Matas.


Cassionei Niches Petry é professor e mestrando em Letras. No final do mês lançará seu primeiro livro, Arranhões e outras feridas, destinado a ser um fracasso de vendas. Escreve quinzenalmente para o Mix e mantém o blog cassionei.blogspot.com.
 


Comentários

charlles campos disse…
Muito bom, cara. Olha as coincidências: ontem mesmo estava pensando por que o Cassionei não escreve uma resenha sobre Ar de Dylan, pra mim ver o que eu posso esperar do romance. Li um resenha sobre o livro na última Cult, mas era tão insossa e por cima do muro que se saía sem saber sobre o que era o texto.
Cassionei Petry disse…
Nem ia escrever sobre o Ar de Dylan, pois em janeiro já havia escrito sobre O mal de Montano, mas não tinha planejado nada para o Traçando. Acabei nesse mesmo.
A resenha foi a do Pécora? E a minha não fracassou?
charlles campos disse…
Nem me lembro do nome do autor na Cult. Professor de não sei de onde. Só sei que ele falou, falou, e não disse nada. Aquela sensaboria de quem acha que não deve dizer se um livro é bom ou uma merda, mas ficar teorizando e tal.

Gostei da sua. Tanto que vou comprar o livro nesse fim de semana. Há coisa de duas semanas o procurei em Goiânia, mas não o achei nas duas grandes livrarias. Mas, com certeza já deve ter chegado.

A propósito, uma coisa que estou para te perguntar já faz tempo: lestes Javier Marías?
Cassionei Petry disse…
É o Pécora, procurei agora. Ele não gosta muito de literatura contemporânea.
Javier Marías eu li acho que dois livros. Não escrevi nada porque ele é grande demais (no sentido de qualidade mesmo) e acho que vou enfrentar outras obras para conhecê-lo bem.
Elisa Elísius disse…
Susto: o título "Fracasso recomendável".
Incômodo: fracasso recomendável?
Alívio: [“A arte é, também, fugir do que acham que você é ou do que esperam de você”, diz Vilnius].
Conclusão: do título ao ponto final, Cassionei, sua resenha é um estímulo para ler "Ar de Dylan" e outras obras de Vila-Matas.
Cassionei Petry disse…
Opa, valeu, Elisa. O título vou dar crédito ao pessoal do jornal, que achou o original longo, que é o que ficou como cabeça do texto: Seis motivos...

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