No Traçando livros de hoje, Cortázar e o fone de ouvido

No Traçando livros de hoje, minha página quinzenal no caderno Mix do jornal Gazeta do Sul, escrevo sobre Cortázar e sua relação com os fones de ouvido. http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/381756-salvo_pelos_fones_de_ouvido/edicao:2012-12-05.html Reescrevi o texto anterior já postado no blog.



 Salvo pelos fones de ouvido

Nas últimas semanas, minhas leituras, a escrita do romance e as notas sobre o processo de criação têm como trilha sonora uma sinfonia de martelos, betoneira, caminhões despejando britas, gritos de pedreiros e radinhos de pilha ecoando “sertanojo primário”. Não, não estou querendo ser reclamão, apesar de ser um chato assumido e me incomodar com os barulhos provocados por vizinhos. Bem em frente a minha casa, estão sendo construídas quatro residências geminadas e, por isso, fico feliz, pois outras pessoas vão realizar o sonho que minha família alcançou recentemente que é ter a casa própria. Falo sobre isso, porém, porque preciso encontrar formas para me adaptar ou tentar contornar o problema.

A quebra do silêncio, que até há pouco reinava por aqui (com a exceção de um vizinho que adora fazer festas na madrugada, inclusive nos dias da semana) interfere um pouco no ritmo de produção do meu romance, que será a base para a obtenção do título de mestrado na universidade. De qualquer forma, já tenho um aliado há algum tempo, um acessório que me acompanha durante muitos anos: o fone de ouvido, invenção do mórmon fundamentalista Nathaniel Baldwin. Desde os tempos em que passava boa parte do meu tempo no ônibus entre a cidade de Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul, com o fone me fechava no meu mundo interior, ouvindo música clássica enquanto povoava minha mente com cenas e personagens literárias dos livros que estava lendo, ou ouvindo notícias oriundas de rádios AM de Porto Alegre. 

Na minha biblioteca pessoal onde escrevo, não é diferente. Sou egoísta nesse sentido. Apenas eu aprecio as músicas que considero as melhores da história da humanidade, ao mesmo tempo em que não incomodo os meus vizinhos. Pela internet, e através do meu fone de ouvido, consigo ouvir rádios como a Cultura FM de São Paulo, recheada de música erudita de qualidade, o que é uma redundância, ou a web rádio Mínima FM, com programas encabeçados por gente como o Luis Fernando Verissimo (sim, ele tem um programa de jazz), José Pedro Goulart, Eduardo “Peninha” Bueno e Jorge Furtado. Nada disso elimina o barulho externo, mas me ajuda a me concentrar para escrever ou para construir conhecimento ouvindo gente que tem alguma a dizer, e diz.

Meu escritor preferido é Julio Cortázar, ainda que não tenha dedicado nenhum Traçando livros a ele, o que o faço, em parte, agora. No texto “Para escuchar com audífonos”, do livro póstumo e inédito no Brasil Salvo el crepúsculo, o escritor argentino afirma que escutava jazz ou música de câmera com seus fones de ouvido não só para livrar os parentes e vizinhos de suas preferências musicais, mas porque o som é melhor, a música parecendo brotar do interior do indivíduo. Depois do texto, ele escreve um poema dizendo que quando põe o fone acontece “um silêncio diferente/um silêncio interior/(...) a caverna do crânio, os ouvidos abrindo-se para outra escuta”, à espera da agulha tocar no disco “até explodir a primeira nota ou acorde/ (...) A música não vem do fone de ouvido, é como se surgisse de mim mesmo,/sou meu ouvinte.”

O som interior que ressoa dentro de nós mesmos não se perde, enquanto que sem o fone ele sai e encontra ouvidos que não o saberiam apreciar. Um desperdício. É assim a leitura. De nada adianta ela ser divulgada, propagandeada e popularizada se os olhos não a souberem ler. Não adianta insistir com quem não quer ler. Mal sabem essas pessoas que a leitura nos salva do que vem de fora. Como o fone de ouvido me salva de sons indesejados.

Cassionei Niches Petry é mestrando em Letras e escritor, autor de Arranhões e outras feridas (Editora Multifoco). Escreve quinzenalmente para o Mix e mantém um blog, cujo nome, “El alacrán clavándose el aguijón”, é retirado de uma das obras de Julio Cortázar. O endereço é cassionei.blogspot.com.

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